Era o sepultamento da mãe de um velho conhecido da época de adolescência. Uma ótima criatura que tratava toda a garotada com um cuidado maternal.

Apesar do momento de tristeza, pude reencontrar  camaradas de traquinagem e alegrias, histórias que iam sendo relembradas com seus protagonistas sendo identificados pelos nomes de guerra. Cuidávamos para não fazer barulho, em respeito ao momento, mas era inevitável que as boas recordações fossem surgindo aos borbotões.

Depois de cumprimentar a família daquela senhora tão querida, que já havia superado os 90 anos, andei alguns metros pelos corredores estreitos do velho cemitério. Um programa sem qualquer planejamento, levado apenas pela curiosidade sobre nomes e datas escritos nas lápides.

Alguns segundos depois do início da minha despropositada caminhada, deparei-me com um homem negro, carapinha encanecida, solitário, em frente a um túmulo coberto por terra ainda fresca. Sua despedida, contemplativa e silenciosa, vivia os últimos instantes.

Aproximei-me com discrição e me postei próximo o suficiente para ser notado. Ele não esperou a minha pergunta:

– É meu filho. Um canhotinha de fazer gosto. Quase foi jogar no Santa Cruz do Recife, mas o futebol, você sabe, é uma máfia.

Assenti com a cabeça. Ele, ainda sem me fitar, continuou a falar sem pressa da sua dor:

– Minha mulher não pode vir. Está inconformada. Ele era a alegria da casa. Tinha essa paixão pelo futebol desde pequenininho. Era de se admirar. Todo mundo parava pra ver o garoto jogar no campo perto de casa, ali na beira da lagoa.

Permaneci em meu silêncio respeitoso, testemunha improvável das imagens que ele guardaria até os seus últimos dias. Finalmente, levantou a vista em minha direção e indagou:

– Você é da televisão, não é?

Antes que eu respondesse, emendou:

– Saiu na TV. Acertaram ele em cheio. Estava com um revólver na mão… Eu nunca que soubesse.

– …

– Era o melhor filho que um pai podia ter.

Senti que o meu sangue corria quente e acelerado pelo corpo, já tratando de descolorir o meu rosto. Um silêncio espesso desabou entre nós dois.

O homem virou em minha direção, lentamente. Parecia demonstrar compaixão pelo meu olhar de tristeza. Eu mirava para uma história que desconhecia, mas que tentava reconstruir numa velocidade só possível à imaginação.

Ele deu um passo adiante, tocou o meu braço com carinho e dividiu comigo a sua saudade do futuro:

– Que pena que você não viu o meu canhotinha jogar. Você não sabe o que perdeu.

Reconhecendo esses truques da alma, ainda o observei por alguns instantes a seguir altivo em direção à saída do cemitério.

Carregava consigo apenas as lembranças que o resto do mundo jamais haverá de conhecer.

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  • Robson Farias

    Magnata da Escrita! Inspiradíssimo!Bela História.

  • Há Lagoas

    Separação!
    Além de ser anti-natural um pai enterrar um filho, a morte demonstra que apesar da alma ser eterna, a matéria é frágil.
    Excelente texto, mas só quem já passou por essa dor pode mensurar o quão sofrido é!
    Nesta violência sem limites, quantos de nós não podemos ser a próxima vitima?

  • JEu

    Uma entre incontáveis tragédias que acontecem muito amiudadamente hoje em dia… é mesmo uma lástima que nossos jovens estão sendo tão rapidamente levados pela onda imensa da irresponsabilidade e da busca pelo improvável… ilusões desastrosas geradas dentro de uma sociedade doente que não sabe mais como bem orientar suas crianças e jovens…
    Bonita história, Ricardo. Pena que tenha um fim tão infeliz…
    Bom domingo, de qualquer forma…

  • wal

    Silencio…

  • Williams Roger

    Pra nos conformamos e entendermos um pouco:
    Livro de Sabedoria, capítulo de número 3.

  • jose alfredo rodrigues de amorim

    São momentos com este vivido por voce que aqueles seres humanos de alma e coração puros sentem a dor do proximo. obrigado pelas bens traçadas linhas.

  • maria auxiliadora araujo

    Por favor, na hora derradeira, tirem-me os rótulos que me pearam uma vida inteira (se bons ou ruins; é o fim.)

  • Marcelino

    “A saudade é arrumar o quarto, do filho que já morreu.”

  • Antonio

    BANALIZOU!!! É parte do projeto de PODER desse governo, que segue a cartilha do GRAMSCI! Quebram-se as INSTITUIÇÕES e estabelece-se o CAOS na sociedade. Só funciona a receita federal. E a CORRUPÇÃO é a instituição nº1.
    DEUS ESTEJA!

  • carlos

    Quantos garotos,poderiam está vivos e mudando o curso perverso da desigualdade social.Se o estado fosse presente em políticas públicas o canhotinha no esporte sua história seria dos estados do futebol…