remake de clássicos do cinema é algo muito comum, embora quase nunca se consiga o mesmo impacto do filme original, responsável pela boa imagem que restou junto à crítica e aos espectadores.

É claro que isso vale principalmente para quem viu a primeira versão e há de fazer a sua comparação contaminada pela reserva inesgotável da memória afetiva. Eis um componente da alma humana que nunca deve ser desprezado.

Espanta-me é saber que há, em curso, um remake de público, especialmente daquele que vai aos cinemas e quer, cada vez mais, esta velha novidade: filmes dublados.

Imaginei a princípio que o mercado, com sua mão invisível, havia descoberto os cinéfilos vetustos, que já penam com os males da idade e têm dificuldades de ler na telona as frases (cada vez mais curtas) dos atuais enredos cinematográficos.

“Nada disso, pai. São os jovens que gostam mesmo de ver filmes dublados”, disse o meu filho a um velho jornalista de olhos arregalados, ainda que capazes de ler as legendas enquanto se deixa envolver pela emoção jorrada da tela.

Sim, porque estamos falando de emoção, coisa que a dublagem, por mais bem-feita que seja, trata de diluir até lhe roubar todo o sabor, transformando o suco em refresco. Todo idioma, bem sabemos, tem seu ritmo, sua acentuação própria, insubstituíveis, acho eu.

Renunciar às sensações que nos entrega o som original, desconhecer a falta de sincronismo entre fala e movimento labiais, eu creio, é perder um tanto do que um filme pode e precisa oferecer.

É verdade que o cinema começou mudo, com pequenos textos na tela tentando situar a plateia na ação exposta na cena. No mais: música, alguns efeitos sonoros pouco sofisticados e The end. Os sons contagiantes, gargalhadas e sustos, ficavam a cargo da plateia – foi a comédia  que marcou a história inicial da Sétima Arte.

Nesse cenário surgiu o gênio de Chaplin. O mesmo inglesinho miúdo, de origem (também) judia, que rechaçou com veemência a sonorização das películas: iria dar errado, vaticinou. É verdade que aquele Vagabundo prescindia da fala: as palavras já moravam nos olhos do mais doce de todos os clowns, e em todos os idiomas do mundo já havia uma tradução instantânea e cristalina para o que ele expressava com movimentos de sobrancelha, sorriso terno e matreiro, silêncios comoventes.

Ao ser contrariado, ele nos presenteou com a sua genialidade: filmes – maravilhosamente – falados, que não demoraram a se tornar obras-primas, condição de que nunca abdicarão. Era o mesmo Charles Chaplin, e era também outro, prenhe de sabedoria, armagura e sarcasmo (Monsieur Verdoux, Calvaro).

Lembro-me que assisti a ótimos filmes dublados na televisão, principalmente durante as madrugadas da minha adolescência. Acho maravilhoso, porém, que possa rever algumas das histórias que me conquistaram, mesmo que dubladas, só que agora com o som original. É o clima – velho e renovado – que conta.

Abrir mão disso? Em nome de quê?

É claro que as distribuidoras dublam os filmes e as salas os apresentam assim porque há uma demanda – crescente, ao que parece, pela exclusão das letras nas telas. Os clientes talvez não queiram perder tempo nem gastar neurônios com supérfluos: e os clientes sempre têm razão.

Depois de ouvir a explicação do meu filho, passei a imaginar como ficariam dublados alguns diálogos do cinema que guardo de memória e que me transportam para histórias que se imortalizaram, em tempos distintos da minha já esticada vida.

Quem assistiu a Incêndios, do canadense Denys Villeneuve, há de lembrar, em meio ao silêncio da sala de projeção – imagino que isso há de ser preservado –, os dois irmãos gêmeos desvendando a chave do doloroso mistério em que foram envolvidos. Ele para ela (versão original): “Un plus un peut être un?”  A dublagem: “Ô mana: se a gente juntar um com um e somar, o resultado pode ser um também?”

Espanto!

Talvez fosse ainda pior, andando um pouco mais para trás, imaginar a dublagem da frase que nunca foi dita em Casablanca, mas que ninguém será capaz de provar que ela não estava ali, se trasmutando em lágrimas no silêncio emocionado de Humphrey Bogart (Rick Blaine) e Ingrid Bergman (Ilsa Lund) num bar de fim de noite: “Play it again, Sam!”.

Como ouviriam os de agora, atendendo aos mais sentidos apelos da plateia? “Menino, acende a galera aí, que o negócio tá cheio de tesão e 51”. A seguir, segue o filme, viria a música As time goes by, ok? Não mais. Seguindo a lógica do momento, ela haveria de dar lugar ao agudo cortante de alguma dupla de sucesso junto ao público legendofóbico: “É o amooooooor!”

Gente, eu quero minhas legendas de volta.

 

José Wanderley Neto vai receber amanhã a Medalha do Mérito Médico da Presidência da República
Você acha possível eleger senador ou governador sem os 'coronéis' alagoanos?
  • JEu

    Bom dia, Ricardo. Parece-me que o dito popular: “águas que passaram não voltam mais” é algo inevitável na “cultura” dos dias atuais… e o que vale é o “ibope”… junto com lucros “saudáveis”… então, creio ser justo concluir que, no caso do atuais filmes, não temos chance de ver “as águas” retornarem… e, realmente, com o filme com legendas e com som original, quem os assistia tinha que colocar a massa cinzenta para funcionar… primeiro para ler as legendas, e, quase simultaneamente, para acompanhar e interpretar as imagens… era um verdadeiro exercício cerebral… conheci, nos idos de 2014, um cidadão português que falava e interpretava fluentemente a língua inglesa… e, em uma rápida conversa, ele me disse que havia aprendido por filmes legendados… ouvia o que diziam os atores e lia as legendas, associando os sons às palavras escritas… depois ficou mais fácil aprender a gramática e a escrita inglesas… também assisti muitos filmes legendados… inclusive nos extintos vídeo-cassetes… e podemos encontrá-los ainda hoje em cds ou baixados nos sites especializados em downloads de vídeos… mais não é a mesma coisa de estar em uma sala de cinema… quanta saudade do concorrido Cine São Luiz, do Cine Rex, do Cine Plaza… lógico que hoje temos as salas nos shopping centers, muito confortáveis, todos… mas, para mim, não têm mais o atrativo dos cines antigos… bom relembrar. Bom domingo.

  • Samia

    É verdade, grande Ricardo. Tem coisas que a tradução vai além das palavras. As pessoas que têm preguiça de ler as legendas não sabem o que estão perdendo.

  • Renato

    A pressa, cada vez maior, pode nos levar a ver mais enxergando menos. Se está tudo no Dr. Google, como já disse você, por que perder tempo com algum esforço mental?

  • Joao da TROÇA anarco-carnavalesca BACURAU da Rua NOVA do Sertão – em St’ANA!

    Ricardo, … um BOM domingo no IDIOMA e no horário de DEUS!
    eram LEGENDADOS nos 1950´s os filmes trazidos a St’ANA por Seu Zé FRANCISCO em pacotes típicos dos 4 grandes do Recife: São Luís e Art Palácio (Sev Ribeiro) mais TRIANON e Art Palácio – este na rua de fundos do Bar SAVOY
    … “30 copos de CHOPP, 30 homens sentados, 300 desejos … 30 mil SONHOS” [Carlos Pena Fo 1929-1960]
    [Apud SOLIDÃO], R Mota 16set17 http://blog.tnh1.com.br/ricardomota/2017/09/17/solidao
    Era uma exigência de Hollywood, creio tanto quanto acredito que DEUS é sertanejo, BRASILEIRO oxente daqui de perto de St’ANA.
    Aprendíamos no pioneiro Cine IPANEMA 1947-1949 do sobrado do meio da RUA derrrubado na administração de Seu Ulysses nos 1960’s. Quantas TRISTEZAS depois do prefeito CULTURA, Dr Hélio CABRAL nos 1950’s – DESEMBARGADOR adiante.
    Em St’Ana sem TV houve Feiras de LIVROS baratos, e empréstimos gratuitos na biblioteca criada por Seu Adeildo desprefeitado em 1978. Amigos da bibliotecária, Dona NILZA, os donos do Cine IPANEMA – Seu ZÉ e Dona VANDA – mudaram-se pra Campina GRANDE-PB. Cá entre nós na Ig da MATRIZ católica com o Papa torcedor do San LORENZO, argentino.
    Apesar do horário de VERÃO: IDEIA brilhante de B Franklin (1706-1790) em 1784 nos EEUU pra economizar VELAS de parafina, adotada pro SATANÁS em 1916 na Alemanha da Iª Doidícia 1914-1918.
    Uma marotice insculpida no Brasil pelo GOLPISTA de 1930 (G Vargas) em 1931-1932: economia de Luz no Verão do OIAPOQUE ao Chuí. DESCONSIDERADO até 1985 – vigor pra todos os ânUs com MENOS energia elétrica no país alisando o PICO das 18 horas.
    [Guia dos CURIOSOS], http://guiadoscuriosos.uol.com.br/categorias/2366/1/horario-de-verao.html

  • Diva

    Paciência e serenidade são coisas que vão rareando. Entendo que você faz uma brincadeira sobre o tema – mas como ela está cheia de verdade.Bom final de domingo.

    • Da CAETéLâNDIA até Miami, é Florida REINVENTAR o Brasil 2017!

      ôI, Diva! … Un plus un peut être un? [apud R Mota acima]
      > na tv CINEMA é diversão – DIVAS no sofá, LÁ si DÓ]
      – As time goes by, ok? [R Mota]
      > em cine CLUBES há críticas de DIREÇÃO, DÍVIDAS de fé, RÉ der SI!
      – Play it again, SAM! [R Mota]
      Uma BOA semana a todos nós!

  • Antonio Carlos Barbosa

    Prezado Mota, não assisto a filmes dublados, fica uma sensação de diálogos fora do tempo da fala dos personagens, como também de alteração do seu conteúdo (vocábulo).
    Quero ao mesmo tempo, informar como leitor assíduo do seu Blog, que acho interessante e gosto muito dos comentários do Santanense João da Troça e ou outros pseudônimos pelo mesmo utilizados.
    Confesso que acho divertido, criativo, cultural e ainda me faz cair em muitas gargalhadas.

    Resposta

    Meu caro Antônio Carlos:
    O João da Troça já virou um personagem deste espaço.
    Concordo com você: gosto muito dos comentários dele.
    Grande abraço,

    Ricardo