Uma criança não precisa de muito para se divertir. Carrega consigo o mais rico de todos os brinquedos: a imaginação. Ela trata de dar vida às coisas, pequeninas e insignificantes que sejam, mas que ganham um sentido de realidade e grandeza que só quem a possui é capaz de definir.

Com ele não era diferente. Pelo contrário. Sua imaginação criava mundos próprios, inacessíveis aos de fora, ainda que compartilhassem o que parecia ser o mesmo invento.

Ela apareceu na sua vida quando ambos ainda não sabiam de perfumes, tremores e arrepios. Sensações que o tempo, sem freios, se encarregaria de oferecer.

O garoto, e não atinava o porquê, tinha olhos de busca, de posse até, para aquela menina de jeito enviesado e uma inexplicável determinação para as coisas que a atraíam, rara em gente mais graúda, até.

Rapidamente, passou a se incomodar em ter de dividir a sua companhia com os parceiros de camaradagens. E era tomado de uma raiva súbita se ela punha entre os dentes um talo de flor, deixando à mostra pétalas, ainda que murchas, como um sorriso adornado de convites.

O passar dos anos em nada atenuou aquele sentimento, que sabia a despeito. Pelo contrário. Notava que também aos outros o gesto, que nela parecia tão natural quanto cruel para ele, provocava atenções incontidas.

A puberdade chegou primeiro àquele corpinho miúdo, de curvas que só se insinuavam, mas já tão cheio de uma graça que era percebida pelo resto do seu pequeno mundo.   

Uma mulher, ainda que muito jovem, sabe e sente quando é lambida pelos olhares dos homens. Alguns, mais pegajosos, molhados. Outros, ásperos, agressivos. E, por fim, os que apenas roçam, suavemente, a sugerir delicadezas, quase imperceptíveis – não para ela.

Então, a escolha passa a depender tanto da razão que é como se esta não precisasse existir.

Bastava uma flor entre os dentes brancos e exibidos para que o céu desabasse sobre a cabeça do dono da desconhecida paixão.

Triste sentença: pequenos atos compõem grandes tragédias. O rapaz, já encorpado pelo tempo, não se via entre os preferidos da companheira de jornadas inocentes. Não que ela lhe negasse atenção, mas o afeto que o tocava em nada se distinguia daquele com que os demais eram brindados.

A manhã estava ensolarada quando, no centro da roda, ele a encontrou a rir alto, ruidosamente, flor entre os dentes, girando em gestos largos, ao som de uma música imaginária, quebrada em vários ritmos. Se não dançava com harmonia, exibia-se em tremores e sem temores, deixando à mostra, sob a saia frouxa, pernas roliças e de penugem rala.

A cada avanço, e cada vez mais rápido, sentia que ela se afastava dele e se lançava aonde jamais poderia chegar.

A cena fez seu sangue subir quente à cabeça, trazendo-lhe uma tonteira que o levou quase a cambalear. O punhal que trazia no bolso, desde a infância de caçador, chegou-lhe à mão num átimo de segundo.

O corte foi certeiro. No pulso esquerdo, de onde o sangue brotou qual um olho d’água que se inaugurava.

Foi arriando levemente sobre a relva. A luz, aos poucos, apagou-se nos seus olhos. O fio que restou, pálido e resistente apenas na sua memória, acendeu a última e única imagem que fora só sua, desde que a enxergara pela primeira vez com olhos de cobiça.

Preso entre os dentes ficou a lâmina brilhante. Tão fria quanto o seu corpo.

 

Francisco Holanda Filho deve ser o novo presidente da Câmara
Ofertas de Tia Rose para quem quer fama e fortuna
  • moacir

    Parabéns pelo texto, você é excelente como sempre. Não sou alagoano, estou aqui há pouco tempo, mas já sou seu admirador.

  • Alexandre Cesar de Medeiros

    Excelente! Quando sai o livro?

  • Rosangela Santos

    “… pequenos atos compõem grandes tragédias…”
    O acúmulo de atos, aparentemente pequeninos em nocividade, faz de sonhos, trágicos fins.
    Algumas pessoas não percebem como muitas de suas atitudes, assim como um câncer, vai devorando o outro de forma cruel e que faz da vítima, um forte candidato a praticar atitudes incompreensíveis para tantos.
    E sem preocupar-me, aqui, com a coerência das ideias, lembro-me da palestra que ouvi de um psicopedagogo recentemente: “Quer compreender o adulto hoje (você ou o outro? Procure saber sobre sua infância.” O adulto e suas atitudes são puro reflexo de como foi tratado e suas experiências quando criança.

    Abração.
    Bom domingo!

  • mirya ferro

    A leitura que envolve a alma, faz o domingo perfeito! Parabéns meu amigo, acredito que posso chama-lo assim.

  • AAraujosilva

    Notável!!! Entre os dentes e no
    recôndito da alma se dão grandes
    tragédias, grandes amores … A
    paixão é corporal. Em repeteco:
    quando saem os livros, meu caro
    jovem, RM? Um sobre a crônica do
    cotidiano, outro sobre a alma, o
    translúcido da alma; outros e
    outros.

  • Julieta de Medeiros

    Ricardo, estou em lágrimas, como as palavras, atos e omissões,transformam a vida em tragédia, ou melhor a trágédia acaba com os sonhos, as ilusões a VIDA.A alma humana, é preciso ter muito cuidado ao dizer e fazer, quem sabe o que o outro carrega.Um abraço carinhoso e respeitoso.Julieta

  • Antonio Carlos Barbosa

    Prezado Mota. Belo texto. lembra o estilo do grande Nelson Rodrigues. Parabéns e vamos em frente.

  • J.Walker

    “Sou,mas quem não é?”No caso,era?

Deixe uma resposta moacir
Cancelar reply