Num domingo pela manhã, ainda jiboiando na cama, assisti a um documentário sobre o São Marcos, como os palmeirenses se referem ao goleiro que marcou época no “alviverde imponente” – assim canta o hino do clube.

O personagem, esclareço, não me desperta grande interesse, mas ele faz parte da minha memória afetiva, alimentada em mais de 50 anos de parceria com meu amigo Fredão, que se transformou numa imensa saudade.

Este foi o mais apaixonado torcedor de futebol com quem convivi, capaz de loucuras inimagináveis pelo seu time do coração. Engenheiro, economista, professor universitário de Estatística – entre outras disciplinas –, Fredão abria mão de qualquer coisa que provocasse a sua razão, no passional campo do futebol.

Lembro-me que, aí pela década de 1990, éramos vizinhos de apartamento, um acaso que me deu grande alegria. Num domingo, após o jogo entre o Palmeiras dele e o meu Fluminense, o companheiro de copo e de cruz pediu para assistir ao VT da partida em minha casa (a antena dele estava com problema).

Vitória do Palmeiras assegurada por 4 x 2, ele sentou-se no sofá, suando agitado, ansioso, e logo começou a gritar para os onze do seu time: “Vai, não deixa ele chutar, faz a falta!” E foi seguindo no mesmo inesperado tom. Tania, minha mulher, espantada com o ruidoso acontecimento, lembrou ao Fred que o jogo já havia terminado, o resultado estava definido. Não havia, portanto, mais motivo para tanto sofrimento. Ele:

– Você não tem a mínima ideia do que está acontecendo. Isso aqui não é brincadeira. Religião é coisa séria.

Ponto final nos questionamentos.

A paixão ocupou de tal forma seu coração e sua mente que se tornou o mais puro fanatismo, que no caso do Fred estava destinado exclusivamente ao Palmeiras. Ele o reconhecia e aceitava como parte essencial da sua existência nos momentos em que os arroubos vinham feito uma cachoeira desabalada. No resto do tempo e nas demais coisas da vida, o professor sisudo encaixotava a paixão e se transformava de novo num sujeito sensato e absolutamente racional – um homem dos números, bom de batente e de amizade.

Ao fim do documentário, em retrospectiva, me dei conta de que nunca fui capaz de uma paixão tão duradoura e avassaladora, o que, imagino, salvou a minha relativa sanidade mental.

Sempre relacionamos a paixão ao amor romântico, que é muito bom “enquanto dura”, e se correspondido. Felizmente, entendo, ela dá e passa, com seu egoísmo absoluto, capaz de enfrentar até o risco de morte em nome de uma fugaz vida a dois. Os crimes ditos passionais acontecem quando uma das partes provisoriamente amalgamadas não aceita nem entende que a passageira das almas já viaja em outros corpos errantes e a transforma em posse injustamente roubada pelo mundo.

Creio que o grande perigo acontece, no entanto, quando a paixão/véspera do fanatismo é coletiva. Política, quase sempre, ela se estabelece em torno de uma personalidade incandescente, carismática, ainda que estúpida, a vociferar frases agudas, de simples compreensão e repetição – um deus tolo a seduzir tolos fiéis.

Você há de lembrar-se de pelo menos um desses personagens, talvez o mais expressivo entre todos, por causa da grande tragédia humana do século passado. Mas sempre surgem novos líderes, alguns absolutamente ridículos e caricatos, a conquistar territórios sem donos – mentes e corações fragilizados e  vulneráveis. É quando a paixão assume os contornos da loucura coletiva, com suas dolorosas consequências.

Ouso dizer que se vivesse no mundo de hoje, Hitler teria milhões de amigos e seguidores nas redes sociais, a armadilha criada pelos homens e que roubou da presa fácil, vítima já do ressentimento e do vazio existencial, qualquer chance de escapar do predador (e tome like e lacração).

Já há alguns anos, ouvi de um amigo, Lecio Morais, que “os filhos são a única possibilidade da paixão permanente”. Sempre concordei com ele, mas hoje já faço um reparo na frase que carrego comigo: o erro  está no fato de que ele não tinha, então, netos, as crias das nossas crias.

Mas ainda dá tempo de corrigi-la.

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  • Flavio

    O fanatismo é uma doença que nasce quando a paixão controla a nossa razão. Ótimo e atual, o tema.

  • Antonio Carlos Barbosa

    Velho Mota, na sua bela crônica pessoal acima, vi a sua afirmação “Este (seu amigo Fredão) foi o mais apaixonado torcedor de futebol com quem convivi, capaz de loucuras inimagináveis pelo seu time de coração (Palmeiras)”.
    Imediatamente, lembrei-me de um personagem torcedor, também tanto quanto apaixonado pelo seu time do coração e da sua eterna paixão, o personagem do filme da minha vida, “O Segredo dos Seus Olhos” Cinema Argentino, não poderia ser de outra nacionalidade, que já revi pela enésima vez, a última foi no mês passado, quanto a paixão do personagem de Isidoro Gómes (Javier Godino) pelo seu time do coração o Racing Clube de Avellaneda, também, bela coincidência, conhecido como La Academia.
    Pablo Sandoval (Guillermo Francella) percebe o rastro deixado nas cartas de Izidoro, ele diz a Benjamin Espósito (Ricardo Darín) que há coisas que não podemos mudar em nós. No futebol, em particular, no caso da paixão do personagem Izidoro, pelo Racing Clube de Avellaneda, onde se encontra a chave, o desejo:
    “te dás conta, Benjamín? esse tipo pode trocar de tudo. De casa, de família, de namorada, de religião, de deus. Mas tem uma coisa que não pode trocar Benjamín- Não pode trocar de paixão” explica Sandoval ao amigo.
    A cena corta para uma belíssima e ininterrupta sequência de tomada aérea do Estádio Tomás Adolfo Ducó, El Palacio, a casa do Huracán.
    Pois é Mota, a paixão pelo time do coração está presente em muito de nós, em inúmeras nacionalidades, sem explicações racionais, somente pulsando pura paixão.
    Bela crônica.
    Bom domingo.

  • Dayane

    Penso que paixão me tira o pouco de visão que tenho. Seduz (como todo entorpecente) e nunca vai embora sem antes fazer estragos. A consciência, no entanto, não me impediu de me apaixonar algumas vezes e igualmente ser devastada. Prevejo, mas não evito-a. Já na política, as redes sociais só trouxeram à tona parte de nossa sociedade doente que insistíamos em desacreditar que existisse.

  • Álvaro Antônio Machado

    Ah! Mas os filhos são a grande paixão; só eles netos nos dão.

  • Antonio Moreira

    Não é novidade, é comum o homem mudar de religião, mas nunca fiquei sabendo que humano transferiu seu fanático pelo time de futebol por outro clube.

    Vi em um vídeo, onde um cachorro e uma mulher estavam sentados em um sofá assistindo a uma partida de futebol. O animal parecia tenso olhando para televisão. De repente, o bichinho vibrou com gol e caiu de bunda no chão. Achei muito engraçado.

    Também comungo : … a paixão “enquanto dura”, ela dá e passa …

    Ouso dizer que se vivesse no mundo de hoje, Hitler teria milhões de amigos e seguidores nas redes sociais. Pois é, pura verdade.

    Vivenciei os exemplos da minha mãe e de uma irmã : Demonstravam amarem intensamente os seus netos.