Há algumas décadas, o que não é pouco, ganhei do historiador e escritor Douglas Apratto um presente cheio de bons significados para mim: o livro Fla-Flu, as multidões despertaram.

Trata-se na verdade de uma coletânea de crônicas sobre o futebol escritas por dois irmãos de uma família rara de jornalistas: Mário Filho e Nelson Rodrigues, ambos talentosos, cada um ao seu modo, e apaixonados pelo esporte que ainda me encanta – mesmo que sem a intensidade dos tempos que vão se tornando apenas memória.

Um: Mário, o mais velho, flamenguista (o que nunca admitiu publicamente), de texto elegante e preciso, com notável veia de historiador. Para ele, os fatos se impunham, deviam ser respeitados. Outro: Nelson, tricolor declarado e ficcionista até de si próprio, que trataria o irmão mais velho como mais um “idiota da objetividade”, não fosse este a sua maior e melhor referência. Seu sangue caminhava em outra veia – desprezava os fatos e era capaz de transformar o goleiro que tomou o frango da derrota do seu time em herói trágico do final de semana.

Se já guardava alguma simpática proximidade com o teatrólogo “reacionário” e incansável polemista, que expunha as entranhas da falsa moral burguesa em sua obra, só vim a conhecer um pouco mais da vida do “namorado do Maracanã” ao ler a maravilhosa biografia de Nelson Rodrigues, O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro, um escritor antes de tudo.

Lembrei-me do nosso personagem de agora ao saber, recentemente, que um bando de desocupados da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro pretendia mudar o nome do “maior estádio do mundo” (já não é mais). Por óbvio, haveria de ser mais uma manifestação desses tempos em que a ignorância é exaltada como se fosse uma qualidade humana. Que tragédia!

Na verdade, o Maracanã só foi batizado de Estádio Jornalista Mário Filho em 1966, após a sua morte – pelas artes do coração – e graças a uma campanha vitoriosa da imprensa esportiva do Rio de Janeiro, comandada por Waldir Amaral (“deixa comigo”). E ninguém haveria de merecer mais esta homenagem.

O Maracanã, nome que o mundo até hoje reverbera, só existe graças a Mário Filho, que fez muito mais do que isso pelo desenvolvimento do futebol no Brasil. (Ele assumiu, entre tantas batalhas, a bandeira do futebol profissional contrapondo-se ao “amadorismo marrom”, vigente nas primeiras décadas do século passado).

Para que o gigante fosse construído onde está, no bairro do Maracanã, Mário Filho teve de peitar um dos mais terríveis adversários políticos que qualquer um pudesse ter à época: Carlos Lacerda, o Corvo, que da tribuna da “Gaiola de Ouro” (Câmara Municipal do Rio de Janeiro) vociferava contra o projeto a ser inaugurado durante a Copa do Mundo de 1950. O “demolidor de presidentes” queria o estádio em Jacarepaguá, para onde a cidade iria crescer, cria.

Mário Filho, no entanto, não tinha tempo a perder e trazia do berço valentia de sobra – era um Rodrigues –, disposto a encarar até mesmo aquele que viria a ser a língua mais temida da República.

Não fez apenas isso, o irmão do tricolor Nelson. Ele praticamente criou a mística do Fla-Flu, com bandeiras agitadas nos estádios (sugeridas por ele nos jornais), concurso de torcidas – tudo ia se tornando realidade a partir da sua incansável imaginação. Entre as tantas criações que agitaram o futebol brasileiro na sua fase romântica está o Torneio Rio-São Paulo (1950) – batizado Torneio Roberto Gomes Pedrosa -, o rico berço do hoje milionário Campeonato Brasileiro de Futebol.

Inventou, produziu e manteve durante quase 20 anos os Jogos da Primavera do Rio de Janeiro – lançados em 1949 -, inicialmente como um torneio municipal de várias modalidades esportivas, até vir a se transformar num evento internacional. Detalhe indispensável: sem aceitar um só centavo do dinheiro público, que lhe era ofertado a cada edição. Aliás, contrariando uma prática que se acostumara a ver nas várias publicações de outro jornalista, Mário Rodrigues chamado, de quem herdara o nome.

Tornou-se um dos principais historiadores do nosso esporte mais amado, e o seu O negro no futebol brasileiro, de 1947, é apontado por muitos como uma forte denúncia do racismo na atividade que tem Pelé como aquele que escreveu dentro das quatro linhas: Fiat lux!

Mas, já foi dito, só depois de morto o “namorado do Maracanã” se uniu, formalmente, à sua criação, não tivessem sido feitos, desde sempre, um para o outro. E se algum desatinado, lá no futuro, tentar cometer a ousadia de mudar o nome do estádio-símbolo do nosso futebol, fica aqui uma modesta sugestão: Estádio Mário Filho/Nelson Rodrigues – unindo o real e a fantasia.

Os deuses do futebol, arrisco, haveriam de abençoar.

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  • Há Lagoas

    Lembro-me que buscando preencher a grade de sua readquirida tv, Adolpho Bloch conseguiu os direitos de transmissão do “Canal 100”.
    Meu pai, um expectador assíduo do Jornal Nacional, perdia ao menos cinco minutos de notícias, para espiar e se deliciar com as jogadas dos grandes ícones do futebol brasileiro, principalmente dos times cariocas.
    O velho torcedor voltava no tempo em nossa modesta sala, e como flamenguista inveterado, se tornava um telespectador da Rede Manchete, de segunda a sexta às 20h00. Aproveitava as jogadas – dribles – de jogadores flamenguistas para atacar o fluminense – e por tabela me chatear – acusando-me de torcer por um time sem alma!
    Até hoje, aquele fundo musical, enquanto se transmitia as imagens, me faz recordar com saudosismo aquele momento mágico!
    Com relação a sua sugestão, seria uma justa homenagem!
    Um bom domingo a todos.

  • Laskdo

    Fiquei impressionado com as virtudes do Mario Filho, exceto o fato do Maracanã se chamar Mario Filho, não sabia nada sobre o homenageado, até desconhecia que ele fosse irmão de Nelson Rodrigues, a quem eu conhecia, não pessoalmente, mas por sua obra literária.
    Refletindo um pouco sobre o Rio de Janeiro, terra do “malandro” e do “essspierto”, inclusive com vários famosos trancafiados no xilindró, alguns ex governadores, acho que 5 chegaram a ser presos. Outros não foram presos, mas mereciam, como o mais ilustre de todos, João Havelange. Então duvidei que o Mário fosse carioca ou Fluminense (estado). Fui pesquisar e descobri, era Nordestino do Recife. Embora eu seja Nordestino não fiquei feliz, afinal o Rio é um Estado lindo, o principal cartão postal do Brasil e merecia não só “inquilinos”, mas principalmente nativos que fossem éticos, virtuosos e pacíficos.

  • Antonio Moreira

    Ainda menino, nasceu uma simpatia pelo Fluminense. O meu amigo James sintonizava na rádio Globo do RJ. Era emocionante demais. Lá adiante comecei a gostar do Botafogo assim também pelo Corinthians -SP onde assisti muitos jogos nos estádios de futebol de SP(capital).

  • Jorge

    A família Rodrigues tem uma bela e sofrida saga no jornalismo brasileiro, em especial, no Rio de Janeiro. A morte trágica de Roberto Rodrigues, assassinado na própria redação do jornal, levou a morte, após alguns meses do seu pai, Mário Rodrigues. Um belo texto, Mota!

  • GUILHERME BRAGA

    ??????????????????????????????
    Brilhante!

  • Luiz R S Filho

    Caro Ricardo Mota, assim como vc, sou possuidor desta raríssima e antológica obra. Eu à adquiri e recebi (ainda guardo o envelope que acompanhou sua postagem em 01 de agosto de 1995) enviado pelo Fundo Comunitário do Rio de Janeiro, sito à Praça Olavo Bilac, no coração do Centro da Cidade Maravilhosa. Sua primeira edição é de 1987.

    Dentre as suas 191 páginas de rica informação histórica, desse, que é o MAIOR CLÁSSICO DO FUTEBOL MUNDIAL, em sua primeira página Nelson Rodrigues já proclama: “O FLA-FLU COMEÇOU QUARENTA MINUTOS ANTES DO NADA”, e chegando próxima à derradeira página (na de n° 188) novamente solta o verbo, cita que seu irmão Mário Filho, que considerava um gênio da crônica esportiva, dizia: ” O FLA-FLU É UM JOGO PARA SEMPRE, NÃO É UM JOGO PARA UM SÉCULO, UM SÉCULO É MUITO POUCO PARA A SEDE E A FOME DO FLA-FLU “.

    E Nelson termina (página 189)….. “DAQUI A DUZENTOS ANOS, A CIDADE DIRÁ, MORDIDA DE NOSTALGIA – “AQUELE FLA-FLU” – AH, QUEM NÃO ESTEVE ONTEM NO ESTÁDIO MÁRIO FILHO, NÃO VIVEU”.

    Esta obra literária é unica.

    Saudações TRICOLORES…… e com todo o respeito, também aos RUBRO-NEGROS.

  • Antonio Carlos Barbosa

    Belíssimo texto Mota.
    Somente em tempos de fanáticos Bolsonaristas/Milicianos cariocas, para os deputados do Rio de janeiro, apresentarem proposta para mudança do nome do Estádio de Futebol, retirando o nome do justo homenageado Mário Filho, ideia de retardado ou imbecis, conforme os tempos de hoje.
    Na verdade, concordo que seria de justiça e de moral, a inclusão no nome do Estádio, acrescentando e ficando assim:

    ESTÁDIO IRMÃOS MARIO FILHO E NELSON RODRIGUES.

    Ambos serão eternos pelo tamanho da obra.