Para mim é impossível não lembrar Nelson Rodrigues na semana em que o Flamengo é, mais uma vez, campeão brasileiro. Desconte-se o VAR, o novo falso moralista do futebol, e está contemplada a maior torcida do país, uma das maiores do planeta (talvez venha a ser superada no futuro apenas por algum time chinês).

Jornalista, dramaturgo, cínico, provocador, frasista incomparável e torcedor do Fluminense – em qualquer ordem de qualidades que o leitor preferir -, o autor de Bonitinha, mas ordinária (também batizada como Otto Lara Resende, uma de suas extravagâncias) não escondia a sua admiração pelo principal rival (“O Fla x Flu surgiu quarenta minutos antes do nada”):

– Cada brasileiro, vivo ou morto, já foi Flamengo por um instante, por um dia… Se Euclides da Cunha fosse vivo, teria preferido o Flamengo a Canudos para contar a história do povo brasileiro.

Mas que ninguém pense que essa manifestação de respeito iria ficar sem a contrapartida do ácido despeito ou sem a sua declaração de amor ao time do coração:

“O Flamengo tem mais torcida, o Fluminense tem mais gente! Nas situações de rotina, um ‘pó-de-arroz’ pode ficar em casa abanando-se com a Revista do Rádio. Mas quando o Fluminense precisa de número, acontece o suave milagre: os tricolores vivos, doentes e mortos aparecem. Os vivos saem de suas casas, os doentes de suas camas e os mortos de suas tumbas”.

O seu conhecido deboche se manifestava em tantos campos da vida humana que Nelson Rodrigues colecionou, provavelmente, mais inimigos do que admiradores.

Como um cínico geral e genial, o jornalista não tinha, por óbvio, um grande apreço pelos da sua – nossa – espécie (“Há homens que, por dinheiro, são capazes até de uma boa ação”). Para ele, “o homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.”

Foi mais longe: “O ser humano é cego para os próprios defeitos. Jamais um vilão do cinema mudo proclamou-se vilão. Nem o idiota se diz idiota. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos. Nunca vi um sujeito vir à boca de cena e anunciar, de testa erguida: ‘Senhoras e senhores, eu sou um canalha’”.

E daí?

– Não há nada que fazer pelo ser humano: o homem já fracassou.

Na sua implicância com a psicanálise, não economizou o humor cáustico, alimentando um debate dos mais debochados da sua longeva carreira de polemista: “Entre o psicanalista e o doente, o mais perigoso é o psicanalista. O cardiologista não tem, como o analista, dez anos para curar o doente. Ou melhor, dez anos para não curar. Não há no enfarte a paciência das neuroses”.

Para reforçar a sua argumentação, deu voz ao ficcionista-trágico que trazia dentro de si: “Eu conheci uma menina, delícia de garota, que com três meses de análise queria matar; em seguida, quis morrer; e uma noite ia despejando água quente no ouvido do marido”.

Com uma obra dramática repleta de traições, adultérios e incestos, o escritor defendia que “sem paixão não dá nem para chupar picolé”. E a paixão física exige, cria e dizia, requisitos que o público do lado de fora da alcova não haveria de ao menos mencionar. “Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor”, asseverou, para depois garantir: “Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém”.

Nelson conseguiu a proeza de se casar duas vezes com a mesma mulher, Elza Bretanha, com quem viveu os últimos  anos da sua vida (morreu aos 68), mas deixou claro que não tinha grande simpatia pelo casamento: “Só um débil mental pode casar-se na presunção de que o casamento é divertido, variado ou simplesmente tolerável. É divertido como um túmulo, o máximo da solidão com a mínima privacidade. Só o cinismo redime um casamento. É preciso muito cinismo para que um casal chegue às bodas de prata”.

Comovente é a autodefinição do dramaturgo, que preferia a vaia (“mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem”) como consagração:

– Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.

Embora não tivesse a mínima chance de sobreviver nesses tempos tão iracundos, Nelson Rodrigues seguiu o destino dos que se tornam clássicos – seu pensamento não perdeu a contemporaneidade:

“O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota. Criou-se uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina”.

As complicações cardíacas e respiratórias do fumante inveterado deram cabo de Nelson Rodrigues, em 21 de dezembro de 1980. Ele amava viver – “Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela”-, mas já deixara pronto o seu epitáfio, cunhado por ele próprio, ao modo:

“Aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”.

Renan Calheiros reconhece Arthur Lira como um dos seus
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  • Antonio Moreira

    Faz alguns dias, um conhecido meu, olhou para mim e disse:
    Se eu tivesse um carro assim como o do senhor; Se eu tivesse a situação financeira que o senhor tem, eu era um homem mais feliz do mundo e nem me importava de ficar “sozinho”!
    Pois bem, recentemente, esse mesmo cidadão, tomou umas bebidinhas no aglomerado onde ele mora e gritou para vizinhança: Eu sou Corintiano, agora os Palmeirense são isso e aquilo (imagine o que ele falou)!!! As mulheres (moradoras do pedaço), imploraram, seguraram os seus maridos para evitar uma tragédia.
    Finalmente, o que esse cidadão era capaz de fazer se tivesse a parte material do senhor Antonio? Saliento que não sou rico e nem miserável, mas não sou capaz de fazer o que ele fez.
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    “Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém”
    Pois é, sempre respeitei o direito da “outra” (mulher)…
    Meu irmão acompanhou uma entrevista de um especialista de casais que se separaram e quando o homem sai como perdedor da relação é comum o macho não aceitar e provocar 5 (cinco) situações. Como todo mundo sabe, tragédia é uma delas.
    Sinceramente, você não se enquadra em nenhuma das 5, disse meu irmão.

  • Há Lagoas

    Sou – e me reconheço – como um completo idiota!
    Um bom domingo a todos.

  • Fernando Antonio

    Parabéns pelo texto, Ricardo. Embora eu só tenha lido suas crônicas ácidas e cínicas, posterior à sua morte, reconheço Nelson Rodrigues como um gênio. Pena que o nosso povo não reconheça esse grande Jornalista. Sou Flamengo e sempre notei em seus textos . Tinha um personagem que criou para justificar as derrotas de seu amado clube, ‘o Sobrenatural de Almeida”:

    O Sobrenatural de Almeida é um personagem de Nelson Rodrigues.[1] Ele é um fantasma, que seria responsável por tudo de ruim que acontecesse contra o Fluminense Football Club, time do coração do cronista. Dava azar; aparecia nas fases ruins quando tudo conspirava contra o Fluminense.

    Bom domingo

  • Edson José de Gouveia Bezerra

    …textaço, me emocionei!! A gente meio que super agradece!

  • Pedro

    “Embora não tivesse a mínima chance de sobreviver nesses tempos tão iracundos…,” Acredito que sobreviveria. Principalmente hoje, quando o que mais existe são pessoas “sem pecados” (só para lembrar a obra A mulher sem pecado). Por falar nisso, tem coisa mais chata do que uma mulher sem pecados? Nelson Rodrigues tinha lá as influências de François de Sade. Acho que essa seria uma boa época para os dois provocadores existirem. Aliás, os idiotas de todos tempos mereciam esse “privilegio”!

  • Antonio Carlos Barbosa

    O Pernambucano Nelson Rodrigues, foi um gênio, ao retratar a natureza humana, seus instintos, seus desejos mais obscuros, publicados nos maiores jornais e revistas do Brasil, com seus artigos e crônicas do cotidiano das pessoas, na impagável ” A Vida Como Ela É…” e também nas suas peças de Teatro. No Brasil atual, fomos derrotados pelas seitas dos idiotas Bolsonaristas e Lulistas, temeridades em duplo. Como são a grande maioria da população, fomos vencidos. Acho as frases do Nelson Rodrigues pérolas, imperdíveis, de tão verdadeiras e cruas, ajuda a curar e a viver melhor. Quanto a fala dele sobre a psicanálise, era pura sacanagem, pois seus contos e casos, eram repletos de desejos, de angustias, de inconsciente revelado, nada mais que a psicanalise em sua forma mais reveladora.
    O tamanho da obra do Nelson Rodrigues, acredito que ele não seja um individuo, mas sim uma pessoa coletiva para o Brasil, como você Ricardo Mota, é uma pessoa coletiva em nosso estado, através desse Blog e do programa radiofônico diário “12:10 Notícias”.
    O texto acima, foi um bálsamo para a alma, em tempos de escuridão e trevas que vivemos e infelizmente irá piorar com o perverso do Bolsonaro e seu Clã de milicianos/militares e políticos monetaristas, com o golpe militar em marcha.
    Vida que segue.