Quantas vezes ouvimos, por esses tempos de pandemia, que a humanidade sairia dela bem diferente, melhor, portanto, do que aquilo que vemos e tanto condenamos, embora esquecendo que somos parte integrante da coletividade universal?

Foram vários os depoimentos pungentes e sinceros de pessoas neste sentido, elas, sim, generosas e crédulas o suficiente para acreditar que a dor transforma as pessoas, desperta nelas a virtude e a bondade, ambas belas e apenas adormecidas. Digo sempre, em tom de blague, que a metamorfose da borboleta vale para a lagarta, mas não para a serpente – e temos ambas vivendo dentro de nós.

O momento mais agudo da pandemia – que pode voltar, é o que estamos vendo – foi, é verdade, de reflexão e de promessas de mudança, que, não demoramos a constatar, não seriam nem serão cumpridas (pela maioria de nós, pelo menos). Tornam-se, ao final, algo tão banal quanto aquela jura do viciado de abandonar o cigarro em momentos de dor e desespero. Passado o evento, vão-se as palavras ao vento.

O poeta e dramaturgo T.S. Eliot deixou gravada a sua crença de que “a raça humana não suporta muita realidade”. Não por outro motivo, creio, a fantasia do homem bom em tempos ruins se tornou tão recorrente (já Dostoiévski dizia, em alguns dos seus grandes romances, que “nós só somos bons quando as coisas vão bem”).

Não, não creio que a maioria de nós seja má, nada disso. Mas entre a ausência da maldade como impulsionadora dos nossos atos e a genuína bondade como guia do comportamento humano há uma distância anímica intransponível para tantos espécimes da mesma espécie de grande primata que compomos.

Os horrores praticados durante a 1ª Grande Guerra também geraram a expectativa, então, de que “agora vai ser diferente, a solidariedade vai se estabelecer entre os homens e os povos na construção de um novo mundo”. A história conta que esse notável otimismo durou tanto quanto o intervalo entre aquela e a 2ª Guerra Mundial.

Não sei se será possível – e tenho motivos para um franco ceticismo – que um dia as sociedades humanas possam abrir mão do conflito e da morte como meio de vida. Entendo como necessários os diferentes e as diferenças, mas sei também que somos movidos por sentimentos primitivos – o medo sendo o pioneiro entre estes (“filha do medo, a raiva é mãe da covardia” – Chico Buarque).

Acionado o primeiro, as turbinas da destruição começam a operar, com os resultados que estamos cansados de saber e teimamos em repetir.

É claro que alguns de nós vamos firmando convicções ao longo da existência sobre a necessidade de sermos solidários, um sentimento ativo, porque isso nos faz bem. Traz-nos uma sensação de paz raríssima, quando confirmado na prática, mas seguramente não pode ser inventado em meio à dor ou à tragédia. Acho que precisa ser descoberto dentro da cada um, cavando uma pá de terra por dia, o que só acontece com quem, de fato, busca em si algo que possa compartilhar com o mundo. Imagino que dê trabalho e não dê dinheiro.

Esse “macaco complexo” (Caetano) que somos precisa de decifrações cotidianas, em tempos de chuva ou de sol, para entendermos por que pessoas boas fazem coisas más.

Mas, talvez, tudo seja simples demais e possa ser definido numa frase, como no fantástico Cada homem é uma raça, de Mia Couto: “A pessoa é uma humanidade individual”.

Ao olhar para ela, estaremos nos vendo e, quem sabe, até nos enxergando.

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  • Há Lagoas

    Ao que me parece, caro amigo, estamos cada vez mais “evoluindo” nos sofismas, nas palavras travestidas de significado sobre o amor. É algo até bonito, mas não se sustenta na prática, já que nossa essência continua podre. E não falo isso por ser um pessimista convicto, mas por aquilo que vejo e observo.
    Família e igreja, eram até certo tempo, duas instituições onde se detinha algum refrigério, mas até elas – e não poderia deixar de ser – estão se desgastando e perdendo suas características basilares.
    É algo melancólico, evoluímos na ciência, e o antropocentrismo se tornou a nova palavra de ordem, mas isso não se refletiu em mudança de natureza, muito pelo contrário.
    E sim, o ser humano é complexo, e não esta nele, nenhuma centelha de bondade que lhe seja própria…
    Um domingo a todos!

  • Antonio Moreira

    Muito bom:

    – O poeta e dramaturgo T.S. Eliot deixou gravada a sua crença de que “a raça humana não suporta muita realidade”.

    – “nós só somos bons quando as coisas vão bem”.

    – O medo sendo o pioneiro entre estes (“filha do medo, a raiva é mãe da covardia” – Chico Buarque).

    -“A pessoa é uma humanidade individual”.

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    Que instinto é esse de tratar mal porque não gosto dessa pessoa?
    Agir de maneira acintosa com o outro por diversos motivos(inveja;maldade;etc)?

    Qual o prejuízo para a humanidade, se você:
    Comporta-se diferente da maioria;
    Não usa Deus para tudo;
    Não sentir necessidade/obrigação de mostrar/exibir para o mundo o “ter*.

    Seria muito bom – Se não pode ajudar, se não quer ajudar, por favor, não atrapalhe a vida do outro.

  • Laskdo

    Texto primoroso, um dos melhores por mim já lido.

  • Antonio Carlos Barbosa

    Para a não extinção do planeta terra, a humanidade tem que ser extinta, não tem outro caminho.