Que raça divergente e desunida, a nossa! E desde sempre.

Heráclito e Demócrito foram dois filósofos gregos, pré-socráticos e protocientistas, que poderiam até ter cruzado seus caminhos no intervalo de dez anos em que foram contemporâneos. Como é do conhecimento de todos, não havia internet por esses tempos, muito menos redes sociais, o que pode nos levar à conclusão de que eles não se odiavam (o que já era bom).

Só que os dois tinham algo mais em comum: carregavam a mesma convicção sobre a condição humana, que achavam vã e ridícula (eram sábios, pois), embora demonstrassem isso de maneiras bem distintas e até antagônicas.

O pai da dialética (“ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”) via a nossa trágica condição com piedade e compaixão, o que expressava em seu semblante permanentemente triste, com os olhos cheios de lágrimas.

Demócrito, o atomista mais conhecido daquela fase seminal da ciência – tudo é feito de partículas minúsculas, indivisíveis, do Universo aos seres vivos  -, era um gozador da nossa espécie: só saía em público com semblante zombeteiro e risonho. Ridículo! Haveria de dizer sobre o seu semelhante, de quem escarnecia às escâncaras (imagino que também dele próprio).

Ora, já está dito: um homem difere mais de outro homem do que dos outros animais. E não seria diferente quando a questão é a concepção de mundo ou a visão de nós mesmos, o que não precisa se tornar mote da permanente guerra de “todos contra todos” da atual quadra da história humana.

Eles compartilhavam a mesma dor da alma, é verdade, mas o que dizer dos que carregam a mesma dor física – como reagem a ela, cada um ao seu modo, se é o que buscamos nessas breves linhas?

Vamos lá!

Giulio Andreotti e João Cabral de Melo Neto foram sujeitos destacados do seu tempo, contemporâneos e camaleônicos: o político italiano comandou governos de centro-direita, centro-esquerda, de cima e de baixo, além de ter sido diplomata; o brasileiro era diplomata de carreira para sobreviver e poeta para viver.

E, eis o busílis, os dois tiveram de conviver durante toda a vida com uma insuportável dor de cabeça, que não aceitava abandoná-los. E reagiram a ela – ou a ela sobreviveram – por caminhos diferentes: Andreotti exerceu o poder até as últimas consequências, inclusive exterminando seus adversários e se associando à Máfia. Ícone da Democracia Cristã, ficou conhecido no seu mundo como o Belzebu.

O que dizer sobre um dos maiores poetas da língua portuguesa, adorado por Mia Couto, e que tinha um sujeito a vigiá-lo, permanentemente, sobre os ombros – assim sentia -, quando traçava seus versos secos e lapidados exaustivamente? Suprema ironia, João Cabral de Melo Neto não suportava ouvir música, mas ficou conhecido dos brasileiros graças à Morte e Vida Severina, seu longo poema a que Chico Buarque embalou em curta e marcante melodia.

E até porque a leitora e o leitor domingueiros deste blog merecem melhor companhia do que a do escrevinhador, deixo-os com um pedaço da declaração de amor – e humor – de João Cabral a uma inusitada musa:

Num monumento à aspirina 

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.

Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Marx Beltrão monta suas trincheiras em Coruripe
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  • Saogala

    Minhas convicções pessoais produzem dor em mim mesmo, nunca busco externá-la, mesmo que por vezes, ela sorrateiramente inflija essa regra. Por isto, busco a todo custo, não impor os meus valores pessoais a quem quer que seja. Meu testemunho – isso inclui – silêncio, distanciamento, reflexão, e acima de tudo a solitude, essa sim, minha companheira inseparável, fazem isso por si só. Quase nunca, preciso verbalizar.
    As dores devem ser sempre pessoais.
    É o que penso, caro blogueiro.
    Um bom Domingo a todos.

  • Antonio Moreira

    Desunidos na dor, e como é fácil eleger um culpado!

    A pandemia está solta, e quem é contra (festas, bebedeiras e noitadas) é questionado:
    Você nunca foi jovem e nunca gostou disso,não?

    Pois é, quem sai à rua para festejar (o quê?) está sujeito trazer problemas para casa e para outros. Sempre tem alguém fora da lei no trânsito, na rua e em lugar público.

    Nos dias de hoje, quem tem uma visão de mundo diferente da maioria, no mínimo é um esquisito/mão de vaca e tantas coisas mais.

    Ainda até hoje, não vi dizer : passe a máscara (está no rosto) se não morre!!!

    Declaração a uma moça:
    “Eu queria ser uma mosca para pousar nos seus lábios”.
    Dizem que foi o William Shakespeare que escreveu essa linda frase em uma das suas obras (parece que foi em Romeu e Julieta).

  • Laskdo

    Depois que li e reli a crônica de hoje, fiquei impressionado com minha ignorância. Tentei mergulhar fundo, mas tive que emergir rápido, pois além de funda são águas a mim desconhecidas, não fui capaz de enxergar quase nada. Então, sem mais delongas e cheio de vergonha, um bom domingo a todos.