No seu surpreendente e divertido O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, o neurocientista Oliver Sacks narra uma cena para ele reveladora das compensações desenvolvidas pelos afásicos, que são incapazes de compreender o sentido das palavras.

Ele conta que em frente ao aparelho de televisão, no hospital em que trabalhava, os pacientes com essa doença neurológica explodiram numa gargalhada estrondosa, exatamente no momento em que o então presidente Ronald Reagan falava ao povo americano.

Sua explicação: muito acima da média dos considerados normais, os afásicos conseguem compreender, pelas expressões faciais, pelas nuances vocais e pelo tom, ainda que sem palavras, “o que é e o que não é autêntico”. Ou seja: o mentiroso é prontamente desmascarado – e era o caso.

Há de se dizer que se todos tivessem a mesma capacidade de interpretação dos pacientes do doutor Sacks, não existiriam mentira e mentirosos, mas não sendo assim, está clara a conclusão.

Todo mundo mente, é verdade, e no cotidiano a mentira só é condenada quando descoberta. Mas a história da humanidade seria bem diferente se a nossa sensibilidade tivesse sido capaz de detectar as grandes mentiras, aquelas que arrastaram milhões para o terror e a ignomínia (cada um que escolha os seus vilões preferidos).

Inegável também é, por esses tempos em que as palavras voam numa velocidade estonteante, que cresce o público que não consegue entendê-las nem desvelar a alma dos que as proferem ou as escrevem.

O que fazer, então?

Passar adiante, sem filtro, o lixo atômico que chega aos nossos sentidos – sejam eles quais forem -, tem sido a resposta dominante. Está evidente que o problema não é nem o meio nem a mensagem.

Caminhando alguns séculos para trás, chego mais uma vez a Michel de Montaigne (ando relendo, apaixonadamente, o francesinho empoado), para quem “a mentira é um vício maldito”. Alerto: nada de virtuosismo absoluto – ninguém é mais humano e comum do que o autor de Os ensaios, segundo o próprio.

E ele nos dá o tamanho da tarefa que temos pela frente para desmascarar os personagens mais sórdidos da vida humana:

– Se, como a verdade, a mentira tivesse apenas um rosto, estaríamos em melhores termos, pois tomaríamos como certo o oposto do que disse o mentiroso. Mas o reverso da verdade tem cem mil formas e um campo indefinido.

Um dos rostos da mentira, tão em voga, é a opinião, justificativa apresentada quase sempre pelos que mentem sabendo o que estão fazendo e a quem alcançar. Isso é muito próprio da “mentira organizada”, uma definição esclarecedora da filósofa Hannah Arendt:

– O esbatimento da linha de demarcação que separa a verdade de fato e a opinião pertence às numerosas formas que a mentira pode assumir, todas elas sendo formas de ação.

No fim, é isto: todos têm direito a ter a própria opinião, mas não o próprio fato, como pretendem os grandes mentirosos da nossa espécie, que aprimoram a matéria-prima das suas sordidezes.

Para o sujeito comum, como eu e – talvez – você, o melhor parece mesmo guardar um tanto dos efeitos colaterais da afasia, inclusive no instante em que a gente se flagra no espelho.

E se a definição do verbo mentir em latim equivale a ir contra a própria consciência – para os que a mantêm ativa e atrevida -, tenho de buscar socorro num sujeito ainda mais antigo, de alguns milênios passados: Sócrates, um craque da verdade.

É dele: “Eu prefiro de longe que o mundo inteiro esteja em desacordo comigo e fale contra mim do que encontrar-me, eu que sou um, em desacordo comigo próprio e contradizer-me”.

(Excluo desta crônica as mentiras de amor e suas consequências.)

Joãozinho da prefeitura: do folclore político à disputa de vereador em Maceió
Rogério Teófilo era um personagem raro na atividade política
  • Prof. Eduardo Sampaio

    Já dizia Bonaparte: “A História é um conjunto de mentiras sobre as quais se chegou a um acordo”.

    Feliz dia dos pais, Mota!

  • Antonio Moreira

    Em uma empresa onde trabalhei tinha uma funcionária:
    Um dia ela disse que passou no Parque das Flores para o último adeus a um amigo.
    Lá, estavam 9 mulheres dizendo: ele é/era meu! E uma delas, abraçava o caixão e dizia – eu era noiva dele, portanto, ele é/era meu!
    Por conta de tudo isso, ela sentiu mal e parou o seu carro na Avenida Fernandes e passou 2 horas desacordada. Quando abriu os olhos, foi direto para Unimed e o Médico não acreditou que ela chegou sozinha no hospital, pois a pressão arterial da senhora malvadeza estava 4 X 4.
    Enfim, ela fez muitas maldades e até engraçadas, mas demorou um bocado para empresa acordar.

    Não é novidade para mim porque a conversa é sempre parecida e a expressão facial também:
    Pessoas chegam desesperadas querendo comprovante escolar porque depende urgente desse comprovante para emprego e para outras finalidades.
    Outros cientes que ainda devem documentos para escola (não trouxe da escola anterior),
    mas ainda assim querem jogar a culpa na escola e ficam inconformados, aborrecidos, etc …

    //

    Um conterrâneo bateu na minha porta às 10 horas da noite pedindo dinheiro do Taxi para levar sua esposa para maternidade, ela estava preste dar um filho à Luz, ou seja, o filho nascer e ver a claridade do mundo.
    Eu me ofereci levá-los no meu carro e ele queria apenas o dinheiro. Nunca mais o vi.

  • Álvaro Antônio Machado

    Amigo Ricardo, parabéns! A crônica trata de mentiras e é repleta de verdades. E não poderia ser mais oportuna, no exato momento em que o País registra lamentáveis 100.000 mortes por uma doença que nos disseram que não passaria de uma “gripezinha”…

  • Laskdo

    As fake news fazem o maior sucesso no mundo, justamente porque as pessoas terceirizam a mentira, enxergam nas notícias falsas o que desejam, não importa o que vejam, se é verdade ou não, assim como pilatos, lavam as mãos e repassam.

  • Antonio Carlos Barbosa

    A questão é que praticamente a grande maioria dos políticos, em quase sua totalidade, mentem descaradamente e ainda conseguem
    a incrível façanha de provar a mentira.