Terá saltado pela janela do carro, após a manobra ríspida e arriscada da moça de olhos morenos, molhados, cabelos lisos e semblante de incontido desespero, apressada para que o momento presente, rapidamente, se torne passado e deixe de atormentá-la, na ilusão de que os dias não se repetem?

Terá se encolhido ante o grito do homem de grossas sobrancelhas, finos lábios de serpente, entreabertos, veneno a escorrer pelo canto da boca, presas agudas e ameaçadoras, a jurar vingança dos justos contra todos os outros, dedo no imaginário gatilho – uma, duas, três vezes acionado -, o projétil sem direção e/ou sentido?

Terá fechado os olhos ao se deparar com o corpo jovem, negro e desmembrado, tatuado no asfalto como os filhos de Hiroshima, a não permitir a nossa desmemória, escrevendo com sangue seco uma história que é de tantos, tão diferentes e tão iguais, importuna ao passante, oportuna ao farsante?

Terá subido até onde a vista não chega, para que nunca mais seja alcançada, cansada de ser inútil mesmo para os que clamam por ela, em poesia, em prosa, em troça, por não existirem bons e cativantes enredos, líricos ou risíveis, a serem contados sem que uma dor lancinante guie os dedos sôfregos no teclado?

Será que mergulhou no mar, em busca de um continente perdido, submerso, uma nova-velha Atlântida, plena de gozos e sins, peixes, plânctons, mamíferos sem pelos, monstros sem fúria, guelras sem guerras, nenhum bicho a que se possa chamar simplesmente de gente?

Será que se enfiou na boca de um vulcão em busca de calor, porque sentiu que a alma humana congelou em temperatura tão baixa que não mais é possível abraçá-la, acarinhá-la, até por quem traz consigo a humanidade mais tola e sobrevivente da desnatureza?

Será, simplesmente, que ela nunca existiu, é fruto, apenas, da imaginação que busca encontrar antes o que não já parece possível depois, uma imagem nascida na escuridão e que há de se desmanchar abruptamente ao primeiro segundo do dia?

Seja como for, sua ausência me é incompreensível e insuportável.

Se projetá-la num tempo, qualquer tempo, ainda que no passado, seja apenas mais um número de ilusionismo barato, de um prestidigitador vagabundo, ainda assim, não me parece mais possível acreditar que nunca nos encontramos.

Posso lhes jurar: ela me sabe a mel, a uma doçura branda, que, mesmo a conta-gotas, produz a mais confortante saciedade, dando a quem saboreá-la a fartura dos dias que merecem ser vividos.

Talvez por isso, tenha virado alimento dos deuses que nos ignoram.

Presidenciável Marina Silva será entrevistada hoje no Doze e Dez Notícias
Aos que acham que o Brasil está polarizado entre direita e a esquerda
  • Joao da TROÇA anarco-carnavalesca BACURAU da Rua NOVA do Sertão – em St’ANA!

    ôI, Ricardo … mais um EXCELENTE crônica domingueira! – Lacrou, amigo!
    texto desenhada na MEDIDA do céu qual PARANGOLÉ do Hélio (1937-1980)
    … ‘ela me sabe a MEL, a uma doçura branda, que, mesmo a conta-gotas, produz a + confortante saciedade, dando a quem saboreá-la a fartura dos dias que merecem ser vividos.’ [ R Mota ACIMA]
    Um vulcão maremoteando belas ARTES de pintor e escultor plástico e performático de aspirações anarquistas?
    > Seriam demonstrações ANÁRQUICAS á moda HÉLIO ‘Sol’ Oiticica?
    – Alegres PARANGOLÉS nascidos da necessidade VITALde desintelectualização e desinibição INTELECTUAL?
    – Da necessidade d’1 LIVRExpressão? [ https://pt.wikipedia.org/wiki/Parangolés ]
    ARREMATANDO em nó de prego batido e PONTA virada … ‘Seja como for, sua ausência me é incompreensível e insuportável.’ [R Mota ACIMA]

    • Glaudistone

      Pura metalinguagem. A delicadeza das palavras desvenda seu próprio conteúdo. Como disse o poeta: “muito leve, leve coisa”.

  • JEu

    Bom dia, Ricardo. Hoje temos uma crônica que bem poderia ser descrita como uma “dor crônica” da vida… e duas perguntas me pululam na mente depois de lido o texto: será que perdemos a crença nas pessoas?… ou será que foram as pessoas que perderam a crença em nós?… afinal, a delicadeza da vida não pode ser avaliada sem essas duas medidas: a crença no próximo e a sua recíproca… e isso me traz à mente o sábio amorável conselho proferido há mais de dois mil anos: faça ao teu próximo como a ti mesmo… dois amores que só existem se houver possibilidade de coexistência mútua, pacífica, verdadeira, sincera: o amor pelo próximo e o amor por si mesmo… e acrescentou o Divino Amigo: ame a Deus sobre todas as coisas… como a dizer que, quando não for possível, dentro de nós essas “delicadezas” da alma que são o amor ao próximo, seja por medo, discordâncias, desconfiança,c preconceitos, etc, etc, etc, e, muitas vezes, por “conflitos” outros, de ordem preponderantemente interna, diminuímos o amor por nós mesmos e descuidamos de nossa vida e, até mesmo, chegamos ao desespero de odiar e negar a própria vida (o que, normalmente, conduz ao desprezo e desamor pelo próximo também…) que possamos descobrir a força de Amar a Deus sobre todas as coisas… que logo, logo, o amor pelo próximo e o amor próprio também retornarão ao coração… creio eu… Bom domingo.

  • Juvenal Gonçalves

    Belo texto, excelente reflexão, Ricardo!
    Poético: se Djavan vê-lo, bem que poderia transformá-lo numa boa música…
    E aí, JEu, seu comentário é muito bom, uma continuidade ao tema da crônica.
    Taí uma coisa que deveríamos cultivar, pelo menos uma por dia: a delicadeza!
    Nos faz tão bem sermos tratados delicadamente, que bem poderíamos “semear” por aí.
    Então, teríamos até um melhor trânsito em duplo, duplo sentido: no trânsito da vida e no nosso transitar diário.
    Boa semana para todos!!!

  • Vera

    A delicadeza está na sua crônica, como sempre.
    Bom domingo.

  • Há Lagoas

    É muito bom saber que aos domingos temos um refrigério a ser compartilhado por aqueles que te acompanham.
    É admirável a forma como as palavras te obedecem, personificando em pontos lúcidos aquilo que no campo das ideias você já delineou. Esse dom é para poucos…
    A singeleza da delicadeza, faz tempo que ela não aflora em mim.