Sobre a cegueira
– A sua mão continua muito macia.
Havia afeto naquela voz pausada e suave. Ela sempre fazia esta observação quando nos cumprimentávamos, e já havia um bom tempo que isto não acontecia.
Eu fora ao seu apartamento depois de muito relutar. Éramos amigos, muito próximos mesmo, que o tempo foi afastando, sem traumas, sem rompimento, apenas cuidando de não mais nos reunir.
Pensara um bocado antes de chegar ali e tocar a sua mão, que se tornara parte indispensável da sua relação com o mundo depois que a noite passou a morar em seus olhos.
Tales, o marido que a deixara em uma viuvez inconsolável, era um velho companheiro de aventuras e gargalhadas na infância e na adolescência. Era dono de um humor que me agradava muito, numa sintonia fina que dispensava palavras.
Fora eu, no exercício da cumplicidade, que apresentara o futuro casal. Ainda que o considerasse um tanto misterioso nas histórias de paixão, nunca avassaladoras para ele – uma doença de que eu padecia –, achei que a doçura e a delicadeza daquela amiga seriam mais apropriadas a ele do que a qualquer outro comparsa daquelas jornadas de irresponsável prazer.
Não me enganei, e até me jactava do meu “olhar clínico”.
Fato é que eu estava ali, agora, sem saber o que falar, disposto a ouvir o que ela quisesse contar, porque me preparara para isso, já sabendo de cor o enredo da tragédia, tantas vezes me fora repetido pelos mensageiros das dores alheias.
Ficara cega, minha delicada amiga, e eu já sabia como tudo acontecera: rápido demais, num átimo de segundo, como as grandes desgraças, que nunca guardam explicação racional, obras que são tão somente do acaso.
Tales se suicidara ali mesmo, atirando-se da varanda do apartamento, sem deixar recado ou pista de que este era o seu “projeto de vida”. Ato contínuo, ao ouvir os gritos que vinham lá de baixo, o nome dele repetido entre choros e lamentos agudos, ela havia caído e batido com a cabeça na quina de um móvel da sala. Quando a encontraram, e não demorou a acontecer, estava sem sentidos, a saliva espessa colando os lábios finos e um imenso galo na cabeça, sinais que denunciavam uma provável convulsão.
– Você sabe que ele não queria ter filhos, não é? Aliás, sempre que falávamos sobre o tema, ele citava Machado de Assis… Como era mesmo? Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria…
Parou, e me pareceu que segurava algo mais do que as lágrimas que vieram a seguir, irresistíveis. “Eu aceitei, até, e me convenci, com muito esforço, de que assim deveria ser até o final dos dias. Era o preço que teria a pagar para ficarmos juntos.”
Na longa pausa que ela fez, não manifestei nada que pudesse lhe trazer algum conforto. Senti-me impotente, tanto quanto me sentira antes de ouvir suas palavras, ali sentado, a minha mão sendo acariciada por ela, pura ternura, o que me pareceu um pedido de socorro.
– Nós havíamos passado a noite conversando. Ele me disse que iria embora no dia seguinte. O impacto foi tão grande que nem ao menos chorei. E algo que eu não conhecia foi se apoderando da minha mente, da minha alma…
Eu já não conseguia esconder a minha curiosidade, tão desajeitadamente humano que sou.
– Ah, meu querido amigo, foi uma punhalada no meu peito, dentro do coração, a lâmina girando, e ele falando, com alegria até. Tales se tornara pai, me disse, e tudo que mais queria era viver integralmente essa nova experiência.
Ela quase já não falava, balbuciava as palavras numa mistura não identificada por mim de sentimentos. Eu? Perdera o prumo, e quase não pude esconder o meu choro. Isso me doía, mas me deixava aliviado, naquele momento.
Terminou seu relato contando que os dois ainda tomaram o café da manhã juntos, no dia seguinte, sem trocar uma só palavra. Ela, insone; ele, com a leveza de quem já não tem mais nada a esconder do mundo, autoanistiado. Foi para a varanda, de onde mirava um futuro que não havia mais ali.
Apertei com força a sua mão, aproveitei o interminável silêncio e me despedi. Sua voz, já revigorada, se fez ouvir mais uma vez, quando eu me virei em direção à porta:
– O que sobrou do seu cabelo está completamente branco.
Gelei.
– Foi a última imagem que eu guardei do Tales: a cabeleira cheia, cobrindo a nuca. Eu cegara, virara apenas uma massa de ódio e desejo de vingança. Eu já não era mais eu, e ele já não seria mais ninguém. O nada era o único destino de tudo que havíamos sido. Foi a minha alma que deixou de enxergar.
As minhas pernas tremiam, e eu desci pela escada numa velocidade que o peso dos anos não haveria mais de me permitir.
Ao chegar à portaria do prédio, o sol ainda aceso, me deparei com a mais profunda escuridão: eu estava absurdamente cego.
Bom dia, Ricardo. Bela e trágica crônica esta… lição de vida… e digo de vida pois não acredito na morte… que há de ser somente do corpo de barro que ao barro deve retornar… portanto, não vejo sentido no dizer: “o nada era o único destino de tudo que havíamos sido”… para mim o “nada” não existe… tudo é vida… quanto à cegueira da senhora, creio que seus “olhos verdadeiros” (os da alma) estão abertos e enxergando algo mais que esta simplória e passageira “vida” no corpo físico… romance triste e belo, este que nos trouxe neste dia. Bom domingo.
No exato espaço entre o amor e a tragédia. Ótimo conto.
ôI, Ricardo, … um BOM e aliviado domingo 2017!
Além 500 ou 200 anos: 517 BraZêL: Áh, esses MOÇOS: lindo FUTURO!!!
> Deixam o CÉU pu Çê escuro, vão ao INFERNO à procura de LUZ [Lupe 1948]
http://www.vagalume.com.br/lupicinio-rodrigues/esses-mocos.html
SEM pecado nem indulgência, apenas esquecimento da ALEMANHA de Alzheimer (1864-1915) há 500 anos o DEBATE sobre o além d’almas presidido pelo Rev Pe M Lutero em 1517 ao redor de pequenos PRINCIPADOS sob Sacro Império Romano-Germânico, onde NOBRES infiéis à IGREJA do Papa contestavam posses de TERRA da Igreja e de VIZINHOS.
Nas 1ªs TESES: Q toda a vida dos FIÉIS fosse penitência. (Mateus 4:17)
– Arrependimento cristão INTERNO grátis X confissão EXTERNA paga.
> Demais TESES: 04–29: sobre o PURGATÓRIO; 30–34: DESCONFIANÇA de indulgência PAGAS; 35-40: arrependimento DIRETO X indulgências intermediadas; 41–47: OBRAS de misericórdia prejudicadas por compras de INDULTOS; 48–52: Se o PAPA soubesse, reduziria a CINZAS a Basílica de SãPedro; 53–55: CENSURA à pregação da PALAVRA pelos MERCADOS; 56–66: Evangelho (J Cristo) – 1ºs serão os últimos [Mateus 19:30 e 20:16]; 67–80: GANÂNCIA impotente ante + leves pecados VENIAIS; 81–91: CRÍTICAS de LEIGOS a indulgências; 92-95: EXORTAÇÃO: imitar Cristo mermo cum DOR e sofrimento. https://pt.wikipedia.org/wiki/95_Teses
É da VIDA [Lupicínio 1914-1974]: soubessem n’amavam nem passav’aquilo [1948]
Estava esperando há um bom tempo um novo conto seu. Valeu.
Como sempre, magistral!
E confesso que na minha ignorância literária tive que ler umas cinco vezes para começar a compreender, e isso só é possível no aconchego do lar em um domingo preguiçoso e cá pra nós um excelente exercício para uma mente enferrujada como a minha, mas feliz por ser seu leitor.
Uma boa semana a todos.
amor e ódio trafegando na sua linha tênue. basta um empurrãozinho um deles aparece.
ótimo texto!