Na deliciosa comédia romântica argentina Alguns motivos para não se apaixonar – e como os hermanos sabem fazer um ótimo cinema -, o protagonista da história, um artista plástico de meia-idade, entra desesperado numa empresa de telemarketing. Busca uma operadora de nome Clara – e descobre que todas as mulheres ali se chamam Clara.

A frustração do personagem, que havia se descoberto perdidamente apaixonado por uma mulher muito mais jovem do que ele, foi tocante. Mas ninguém há de imaginar que as nossas interlocutoras do cotidiano, em horas tão inapropriadas para nós, se apresentam com os verdadeiros nomes.

Já bastam os desaforos que haverão de ouvir todos os dias. E não me excluo dos descorteses que reagem irritadamente às abordagens tão impessoais.

Há, inegavelmente, invasão da nossa privacidade. Às vezes, tenho a sensação de que a moça do telemarketing está me espreitando, esperando o momento em que eu me deito no sofá, cansado da lida, para ver televisão ou ler um livro, e trata de exercer o seu mister de ferir os meus ouvidos e minha paciência.

– Triiiiiiim!

– Mas quem será a esta hora?

É ela:

– Senhor José?

Sou eu.

Todas as Claras são orientadas a falar do mesmo jeito, gerundiando, dizendo que o banco tal está lhe oferecendo uma oportunidade de se dar muito bem. Banco oferecendo vantagem a alguém? Só se eu fosse o dono, banqueiro – e nem bancário eu consegui ser. Mas isto, convenhamos, não nos dá o direito de sermos mal-educados – e todos somos grosseiros, em regra, com aquelas que nos parecem ter nascido como extensões do telefone.

Reparando bem, esta é uma das profissões mais árduas e insalubres que existem. Ouvir aquele tanto de impropérios a cada dia não é fácil nem saudável. É verdade que todas as ocupações criam suas blindagens, para que aqueles que a exercem não antecipem o fim do ciclo vital: médicos, juízes, jornalistas, empregados domésticos e, por óbvio, operadoras de telemarketing – de inegável semelhança com juízes de futebol, homenageados – ao modo – pelas torcidas de todos os times.

Já me arrependi algumas vezes das minhas rispidezes, já pedi até desculpas e jurei para mim mesmo que iria me comportar melhor na próxima e na seguinte. Nem sempre consigo, embora tente tão insistentemente quanto ela ao me oferecer um negócio “vantajoso”. Nos últimos tempos, tenho optado pelo humor, ainda que em algumas ocasiões carregado de deboche:

– Cartão de crédito novo? Mande logo, pelo amor de Deus, que o meu último foi cancelado ontem. Minha filha, você é uma enviada dos céus.

As moças do telemarketing, eis a minha constatação, viraram nossas psicanalistas. Muito já devemos a elas, pelo descarrego da alma, em desabafos insentidos e sem sentido. O Temer ainda não caiu? O salário encolheu? Uma topada no pé da cama? O engarrafamento da Fernandes Lima? Tudo culpa da moça do telemarketing!

O problema é que o seu José – e somos tantos – só se toca dessa dívida tão humana ao escrever estas tortas e parcas linhas domingueiras.

A minha história com as Claras ainda não se fechou (a do filme teve um final bem interessante). Mas acho que está na hora de um pedido público de perdão às moças do telemarketing, até mesmo lhes fazendo juras de eterna delicadeza.

Ainda que eu saiba o quanto é difícil é desaprender a língua dos homens.

 

 

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  • JEu

    Bom dia, prezado Ricardo. Interessante e tocante esse texto de hoje… que desnuda, abertamente, nossa tão apequenada humanidade… capazes de exemplos de tão grande abnegação como sói acontecer com aqueles (ainda não muitos) considerados pelas pessoas como “santos” pela caridade; quantas e quantas vezes nos apequenamos pelas nossas “impaciências”… donde virá tal sentimento?!!! em que refolho do coração está encravado, como um espinho, o sentimento da impaciência para com o próximo?!!! bem sabemos, como dito no texto, que devemos nos portar de outra maneira, e, no entanto, insistimos no comportamento muitas vezes ofensivo ou agressivo, senão fisicamente, mas pelas palavras e tom de voz alterado… se muitas vezes nos apiedamos das tragédias e sofrimento das pessoas e, até, de animais, que conseguimos enxergar, então, por que reagimos com tamanha desconsideração contra pessoas que achamos que nos importunam por isso ou por aquilo de somenos importância?!!! Isso nos leva, novamente, a lembrar os conselhos que Alguém nos legou há mais de dois mil anos: amai-vos uns aos outros… se alguém quiser te fazer andar mil passos com ele, dê mais dois mil passos… não fujais a quem quiser te pedir emprestado ou quiser pleitear algo de ti… perdoai não só sete vezes mais setenta vezes sete vezes… e pensando nessas palavras, será que Ele não nos estava dizendo para nos esforçarmos, lutarmos contra nós mesmos, para vencer a impaciência que, aqui e ali, nos faz agir de forma rude e impaciente em relação aos “próximos”?!!! E chego à conclusão que ainda estamos muito longe de sermos aquele “ser humano” que imaginamos ou enxergamos em nós mesmos… e vejamos que estamos falando só de um pequeno exemplo: a da moça do telemarketing… que dirá dos casos no trânsito; nas diversas filas que enfrentamos; nos estacionamentos; na espera nos diversos locais e consultórios, etc, etc. Excelente texto para meditação, Ricardo. Bom domingo.

  • Há Lagoas

    “Já bastam os desaforos que haverão de ouvir todos os dias. E não me excluo dos descorteses que reagem irritadamente às abordagens tão impessoais”.
    Será que o nobre blogueiro não incluiria os comentaristas deste blog?
    Tenho usado este espaço como válvula de escape, argumentando coisas que não poderia falar na repartição. Por isso até no domingo sempre passo por aqui.
    Um bom domingo a todos!

  • treal

    Concordo.
    Menos com as moças eletrônicas programadas!

  • Antonio Moreira

    Atendi a uma ligação e disseram: Que tal 60 mil reais, não é um bom dinheiro?
    Eu disse que sim, mas senhora pode ficar com o dinheiro…

    Quem ainda não foi abordado por grupo de religioso querendo converter pessoas a todo custo?

    Por que aqui em Maceió é comum o camarada jogar água no para-brisa de carro sem a permissão do dono do automóvel?

    Período de horário político nos meios de comunicação:
    Horário reservado ao FPiiim, horário reservado ao FP, horário reservado ao FP…

    Disputa de quem faz mais barulho de som de carro – Quem gosta de passar nesses locais?

    Jornalista Reinaldo Azevedo-São Paulo: impressionante como tanta gente esculhamba esse cidadão.
    Faz um tempinho que gosto de ouvi-lo, assim também como outros radialistas/jornalistas de alagoas, mas sempre faço o meu filtro.

    atual:
    Por que mataram tanta gente no Brasil?
    As vítimas eram inimigas dos assassinos?

    No mundo das propinas – empresários, políticos, autoridades e delatores:
    Depois das denúncias e prisões, ainda são amigos?

  • Vilma

    Que bom ver tratado com tanto respeito e humor um tema banal do nosso cotidiano – e que nos incomoda muito.
    Parabéns!

  • Do BARRO Duro a Jacarecica SUAVE, salve SãJORGE!

    ôI, Ricardo! … um BOM domingo na PAZ dos BEM nascidos!
    desaprendendo “Alguns motivos pá NUM se apaixonar” [Argentina 2008, 90min]
    http://entretenimento.r7.com/cinema/alguns-motivos-para-nao-se-apaixonar.html
    Nas ENTRELINHAS de sextas e sábados com MAYSA … “bebida e fumo, cabelo curtos e calças, SINAIS de masculinidade à época (1950’s)”
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Maysa
    BEM nascida (1936) no Espírito Santo com VERDES olhos, educada no Rio (Botafogo, 1940’s), faz-se MATARAZZO (1950’s) em SãPÁLio (Higienópolis) antes de Maricá-RJ (até 1977) gravando “Ando SÓ na multidão de AMORES” [Álbum PHILIPS, MAYSA 1970]
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Ando_Só_numa_Multidão_de_Amores
    Na COMPOSIÇÃO de J Florence e A Mesquita
    * JAMAIS deveria aceitá-lo ‘tra vez, xô DESPREZO de todos Vcs.
    – Ele VOLTOU pá matá a SAUDADE ki num m’deixou – FICOU!
    * Impedir q’a LOUCURA fizesse de mim um MOLAMBO qualquer
    [MOLAMBO], https://www.vagalume.com.br/maysa/molambo.html

  • flexaldecima

    Essas Claras só ligam nas horas erradas, pra mim,sei que a culpa não é delas, ou deles, porque não é só mulheres,é um saco, devia ser como é em alguns estados,ter uma LEI que nós permita escolher, se quer receber não essas indesejáveis ligações, descobri que existe um dispositivo automático para fazer essas ligações, por que as empresas estão contratando menos, dai como são poucos para fazer as ligações quando vc vai atender demora, e cai, é porque eles estão com outra ligação e não dá tempo de atender,é ainda mais irritante.

  • sebastiãoiguatemyrcadenacordeiro

    MAIS UM DOS INÚMEROS FLAGELOS DA NOSSA ATUAL CIVILIZAÇÃO. . . UMA TORTURA,UMA PEGADINHA,QUE RESOLVI ESTAR FORA. PAGO O PACOTE DA NET COM O TELEFONE DESLIGADO APESAR DE PAGÁ-LO NA DESPESA DO “COMBO”. FOI A SAÍDA QUE ENCONTREI PARA ME LIVRAR DO “IMBRÓGLIO”, ALÉM DE ME ENCONTRAR CONSTRANGIDO DE TANTO REVIDAR ÀS “PROVOCAÇÕES” DAS “MARQUETEIRAS” .