Em linhas tortas

Por mais que tentemos compor um enredo em que a lógica explique o caminho trilhado até chegarmos onde estamos, não podemos deixar de reconhecer a força do acaso e a inimaginável combinação de imprevistos que nos conduziram até aqui.

Não, eu não acredito em um destino pronto e acabado, está claro. Ele vai se fazendo, erraticamente, e acho que o próprio ficaria surpreso se pudesse se ver no espelho ao cortar a fita de chegada. Certamente, não haveria de se reconhecer, pelo menos com todos os traços que lhe projetamos com um olho no retrovisor. Talvez até reagisse como João do Vale, ao assistir à defesa de uma tese acadêmica sobre a sua obra: “Eu queria apenas fazer um baiãozinho”.

Andarmos em linhas tortas, feito bêbados, em busca de algum conforto na lida, apesar de imaginar que tudo está escrito nas estrelas, esta é a nossa inevitável jornada. Apontamos com firmeza numa direção, com a convicção de uma criança que vê monstros e fadas na escuridão, sem atinar que o alvo não está ao alcance da nossa vista.

Ninguém melhor do que o filósofo rosiano Riobaldo para resumir numa frase essa cegueira coletiva:

– A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto mais em baixo, bem diverso do que em que primeiro se pensou.

Alguém aí discorda?

Pois bem.

Isaac Newton era um gênio e traçou como poucos linhas retas por onde a ciência moderna avançou como nunca até então. Mas teve os seus dias de bêbado. Entrou sem freios na corrida do ouro, o veneno que matou milhões em todo o planeta e ajudou a trazer os conquistadores europeus para o Novo Mundo. (Em seu encontro com Montezuma, imperador asteca – México -, o comandante espanhol Hernán Cortés teve de se explicar sobre a ambição sôfrega que o arremessava na direção do metal precioso: “Só o ouro pode curar uma doença que eu tenho no coração”.)

Talvez a dureza da vida, muito pobre e até humilhante, tenha empurrado Isaac Newton para a busca irracional pelo vil metal – literalmente. É espantoso saber que o homem que descobriu a Lei da Gravidade, que felizmente não vale para a área do direito, tenha ido tão longe ao mergulhar no esoterismo. Por 20 anos, o gênio que escancarou as portas do conhecimento da Física Moderna ao mundo se dedicou à alquimia.

Detalhista, deixou escrito o cotidiano de suas pesquisas nesta área, inclusive na busca pelo minério que brilha aos olhos dos homens mais do que o Sol. No seu diário foi encontrada esta receita, escrita de próprio punho pelo cientista:

“Dissolver leão verde volátil no sal central de Vênus e destilar. Esse líquido é o leão verde, o sangue verde Vênus, o dragão da Babilônia que mata tudo com o seu veneno, mas conquistado, por ser mitigado pelos pombos de Diana, é a ligação de Mercúrio”.

Os debochados de hoje haveriam de dizer que Sir Isaac Newton teria consumido algo “estragado”, embora tenha tido tempo para a regeneração da sua inegável lucidez. Naquela quadra da história da nossa tola espécie, no entanto, ele era apenas mais um que não sabia de onde vinha nem para onde ia, e que, maravilhosamente, fez da sua trajetória torta um momento único de revelação para a Humanidade.

Ele compôs com perfeição o seu “baiãozinho” e encerrou os seus dias como presidente da Casa da Moeda da Inglaterra. Não há de se negar que conseguiu chegar bem perto do grande tesouro ambicionado pelo homem.

Mas não precisa ser um gênio para descobrir, antes da última curva, como se desentorta um destino. Tenho cá comigo um exemplo muito próximo: o da minha mulher, Tania batizada. Ela é dentista e sanitarista por formação, mas nos últimos anos descobriu uma vocação inescapável, da qual não pode mais fugir: é uma refinada compositora de ambientes, conseguindo obter com facilidade arranjos harmônicos e de raro bom gosto, invisíveis aos meus pobres olhos míopes.

E não se faz de rogada ao expressar seu talento: quando visitamos alguém, em meia hora ela vira uma casa ou apartamento de cabeça para baixo. Ato contínuo, uma sala pode virar varanda ou vice-versa. Ainda que o impacto inicial até assuste, o resultado final é pura arte – a ser celebrada.

Quanto a mim… Bem, eu enxergo tão somente que as linhas da minha mão permanecem tortas. Nem o meu baiãozinho deu em grande coisa, e mesmo que lá na esquina, piscando ostensivamente, o letreiro se insinue em um chamativo “The end“, nada indica que o enredo possa se endireitar a tempo para um grand finale.