A vida apronta algumas coisas engraçadas, tolas, mas que até funcionam, mesmo parecendo bruxaria barata. (Ressaltando que há, sim, bruxaria cara, tão imprestável quanto.)

Entre essas subnaturalidades graciosas está o deslembramento de pessoas com as quais eu já tive alguma relação, profissional, pessoal, algo próprio do comum da vida, mas que não imprimiram em tinta de boa qualidade nenhuma bem-querência.

Não me refiro a esquecer nomes, situações, coisas repetíveis e inevitáveis, mas a desmanchar na memória gente cuja ausência nos faz tanto bem que nem notamos o próprio esquecimento. Lembrando que o mesmo deve acontecer com algumas pessoas em relação a nós. Ou será que fomos sempre os virtuosos da paróquia? Para todos, esquecer também é viver. A única exigência inegociável, por óbvio, é o afastamento físico entre as partes esquecíveis.

Esta arte, assim definamos, está alguns degraus acima do desprezo e requer principalmente descuido, desinteresse pra valer. Nada que exija esforço psicológico ou contra-afetivo, porque se não for desse jeito, pode resultar exatamente no contrário.

Em A aldeia de Stepántchikovo, o velho Fiódor conta a história de um rapaz atormentado pela obrigação de nunca sonhar com “o boi branco”. E quanto mais ele se esforçava para esquecer o animal, nos minutos que antecediam o sono, mais o bicho lhe surgia alvo e assombrador em seus sonhos.

Esquecer não há de ser, aqui, querer não lembrar – é simplesmente deslembrar. Um desacontecimento tão importante quanto despercebido. Talvez por isso mereça mesmo o tratamento e a distinção de uma arte, embora seja uma arte que não se presta a despertar emoções – nem na plateia, nem mesmo no artista.

É até possível que você guarde algum talento nesse cenário de insinuante invisibilidade, desde que não seja do tipo que amarga rancores e se abastece neles, como se sua força vital dependesse do fel ou da bile a correr no sangue, quando esta erra fluidos e ductos.

Dou-me conta, hoje,  de que só me toco da existência de algumas pessoas se delas alguém me fala, cita os nomes ou lhes faz alguma referência. Fora isso, elas se tornaram – ou vão se tornando – imagens disformes, um ponto no meio do oceano “observado” em um voo transatlântico.

Agora, por exemplo, lembrei-me de alguns desses personagens, de quem já não guardo sentimentos quaisquer, o que me dá certa satisfação. Ignorá-las tão somente, mesmo que sendo uma parte inegável do meu passado, me parece neste instante algo tão prazeroso quanto uma colherada de um bom doce de leite carregado demais no açúcar: não convém repetir.

Bem da idade?

Pode ser. Mas é provável que assim não fosse se lá para trás, na minha já longa jornada, não houvesse um Rosa a ecoar e a alimentar a – ainda – boa lembrança, a me dizer que “quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente”.

Talvez esses fantasmas não caibam mesmo é no espaço reservado à saudade, uma dor da qual não creio que queiramos, de fato, nos livrar: se não nos mata, pode até nos ajudar a viver. Que desse recanto da nossa alma tomem conta os que partiram ou sumiram no oco do mundo, mas deixaram conosco pelo menos um pouco do melhor que tinham.

Falo de amor, coisa que não definha, não se desmancha, não se desmilíngua, não se esfarrapa, não mancha e não perde o cheiro.

“O resto é silêncio.”

 

 

Téo Vilela está preocupado com vaga no Senado em 2018
Bom humor do eleitor salva programa de TV que ninguém vê
  • JEu

    Bom dia, Ricardo. Gostei demais da conta do texto de hoje. Realmente, viver “saboreando” as amarguras do passado não é coisa boa não… principalmente para o fígado, o estômago, o coração, etc, etc… é coisa ruim mesmo para a saúde, tanto física quanto emocional… Se não podemos ou não conseguimos perdoar, ou seja, chegar ao ponto de não sentir desprezo, raiva ou até mesmo ódio por quem nos magoou um dia, podemos, como vc bem o disse, simplesmente deslembrar dessa pessoa, não a guardando em nossa mente a cada instante, não deixando que ela, como disse também, se “aposse” de nossos sentimentos e pensamentos… ou seja, devemos viver e deixar essa pessoa viver também… cada um no seu rumo… Valeu muito pela excelente advertência de hoje. Bom domingo. Fiquemos em paz… se possível, com Jesus…

  • ARTUR GAIA

    Perfeito Ricardo, vivendo e aprendendo, kkkkkkk . Tenho 64 anos e ainda me engano, mesmo com meus amigos de infância. Cada satisfação e cada reação é uma surpresa.

  • Joao TT

    ôI, RICARDO! … com cabeça ENORME de sertanejo desacreditado AGORA curto a maturidade pró-SENILIDADE na transitoriedade HODIERNA
    … “VÉU que se levanta + CEDO p’UNS q p’ôTuS: há quem recorde eventos aos 2 anos de idade, e também pessoas com nada a RECORDAR antes dos 7 ou 8 anos. [P Q Vc NEM alembra do BEBÊ sido?], Z Gorvett da BBC Future 02ago16, _ http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/bbc/2016/08/02/por-que-voce-nao-se-lembra-de-quando-era-bebe.htm
    PARECE até nascido sabendo que … “Todo MENINO é um rei/ Eu também já FUI rei/ Mas quá … DESPERTEI [R Ribeiro], _ http://www.vagalume.com.br/roberto-ribeiro/tdo-menino-e-um-rei.html
    CABEÇA enorme sobre pés CHATOS urbanóides de olhos ladeando FUÇAS assuntando o CHÃO entre queda e outra comecei a farejar um POEMA de B Tavares, recitado em 09nov13 por A Guimaraens no METRÔ Carioca Rio-RJ da Estação NORDESTE youTUBADA em 1min 09seg _ http://www.youtube.com/watch?v=ETaUCPYjHkY
    … “a BOLSINHA da minha amada/ pêlos barrocos,/ LÚDICOS, profanos./ faminta/ como o polígono-das-SECAS/ e cheia de RITMOS/ como o recôncavo-BAIANO./ … CABELUDA/ tapete PERSA./ buraco-negro/ PÚBIS/ do Universo.
    _ http://blogdoitarcio2.blogspot.com.br/2013/12/publicadoinicialmente-em-11-de-julho-de.html
    É a memória da PREGUIÇA neste DOMINGO com tudo em CIMA no Tudo na HORA com … “dança da ONÇA: CriAnça, CriOnça/ CriOnça, criAnça/ Dançando essa dança … A onça des-ONÇA!/ Não tinham DESCANSO [A Calcanhotto, _ http://www.letras.mus.br/adriana-calcanhotto/crianca-crionca
    Um BOM domingo pra todXs NÓIS, meRmo sem o Neymar do BRASIL Brasil 2 X 0 Venezuela na MÉRIDA com gol de G JESUS na terça 11out16: é TÓI! – brinca o SANTISTA!!!

  • Vera

    Ricardo, vejo sabedoria, humor e serenidade nos seus textos dominicais.
    Este é mais um.

  • Juraci Roberto Lima

    Brilhante, Ricardo. Poderias fazer o mesmo raciocínio com a CULPA? Chamaríamos como o artigo? A ARTE DE DESCULPAR(DESCULPABILIZAR) PESSOAS? Porque a culpa também maltrata e mata. Livremo-nos dela agora e na hora de nossa morte.
    Juraci Roberto Lima

    • Maria Luisa

      Ricardo, sou sua “observadora” sem a assiduidade que gostaria. Admiro seu trabalho na TV, entrevistando e escrevendo. Vc não me conhece. Sou da época que vc cursava medicina (com a pastinha verde embaixo do braço) e de repente chama a atenção quando deixa o curso que tantos batalham repetindo vestibulares…
      Mais um texto brilhante que gostaria de ter escrito…deveria passar por osmose essa capacidade de lidar com a emoção e as palavras…
      Parabéns!!! Façam-se minhas suas palavras.

  • Antonio

    Não “passei” pela censura. Coisa dos militares do contragolpe?Estamos bem pior que em 64!Institucionalmente falidos, voltaram todos do “exílio” pra acabar com o país.É bom não esquecer.Abraço!

  • veneno

    Mota: Recordar de pessoas que nos fizeram sofrer é a mesma coisa que tomar veneno e querer que o caluniador sofra os efeitos.

  • Alexandre Aciolly

    Estou aguardando o tempo de deslembrar algumas pessoas. To ansioso para chegar a esse momento…!

  • santso

    Muito bom meu caro o seu texto, embora eu não tenha essa capacidade de esquecer com facilidade coisas que me fizeram mal e, por isso, as consequências são mais danosas.No entanto, o amor supera tudo isso, inclusive daqueles que já estão na eternidade. Um abraço!

  • Jisete Monteiro Nicacio de Lima

    Nos meus bem vividos 51 anos ainda estou aguardando esse maravilhoso tempo de deslembrar determinadas pessoas, que na realidade não me fizeram mal algum, mas também não tiveram grande importância, pelo simples fato de serem completamente o oposto de tudo que sempre acreditei em relação a um amigo, um parente, um amor…
    Boa noite. Abraços.

  • Tarcísio

    Ótimo texto.