Eu nem ao menos sei se os números feitos em metal fundido ainda estão pregados na parede da frente da velha casa da Buarque de Macedo. Mas da última vez em que olhei para ela com alguma atenção, não a reconheci.

O portão de ferro, largo e vazado, não existe mais. Foi trocado por uma porta estreita, como se a casa tivesse trancado a cara, se amofinado, perdido para sempre o sorriso que era oferecido aos que chegavam.

Não, hão havia sido ali que eu vivi os primeiros vinte anos da minha vida. Quando eu nasci, meus pais já haviam adquirido aquela casa, algo modesta, de alguns cômodos, que foi passando por várias reformas, feitas em pedaços, e que lhe deram o jeitão que ainda guardo na memória.

Aliás, eu morava “na rua do trem”, como chamávamos a Buarque de Macedo, contemplada com duas pistas largas, de terra batida, divididas pelos trilhos que levavam a Jaraguá.

Não lembro a minha primeira imagem de trem, passando na porta da velha casa, mas trago muitas imagens de trem, principalmente quando ele se tornava uma brincadeira perigosa, diziam seu Luiz e dona Lúcia, ao sermos flagrados pegando uma carona até a estreita ponte de madeira.

Então, os carros não atravessavam de um lado para outro do riacho Salgadinho, o que só era possível aos pedestres, que cruzavam por sobre as águas rasas, que vieram depois a apodrecer, ouvindo os pés batendo na madeira. Um ranger que inspirava medo em alguns. Não para nós, que passávamos correndo em busca sabe-se lá de quê.

Reparando bem, a velha casa, por aqueles tempos, não tinha grande importância. Era apenas o lugar de onde eu partia para o mundo lá fora. A rua, sim, atraía sonhos e aventuras.

Havia dias, é verdade, em que a velha casa parecia se encolher, opressiva: era quando os juízes do tribunal doméstico estabeleciam a pena de privação da liberdade. Que castigo!

Mas não posso negar que no inverno, quando as manhãs chegavam úmidas, gotejantes e escuras, a velha casa da Buarque de Macedo se transformava num adorável abrigo, onde os cinco barulhentos filhos do casal brincavam juntos, em algazarra, como não nos seria possível no resto do ano.

Na sala em que eu aprendi a amar a música, conhecendo os meus primeiros ídolos fora do futebol, destacava-se um grande sofá, que, vez por outra, passava por uma reforma.

Foi numa dessas ocasiões que o estofador descobriu um dos nossos mais bem guardados segredos: na parte de trás do sofá, ele encontrou objetos os mais diversos, cuja serventia ele desconhecia inteiramente, como disse ao meu pai. Lá estavam, para a sua perplexidade, escova de madeira para roupa, tiras largas de couro, uma espada de plástico que pertencera ao Alexandre, o mais novo da casa, tudo despejado ali, por uma pequena passagem no forro traseiro.

O delator acabara, sem intenção, é verdade, de devolver os instrumentos que eram utilizados para nos convencer a seguir as regras do mundo e, por óbvio, os mandamentos da casa – que haveriam de ser bem mais do que dez.

Quartos e sala de visitas tinham o piso de madeira. De tacos, para ser mais exato, que havíamos, eu e Beto, alternadamente, de encerar todos os sábados. O que fazíamos com destreza, celeridade e esforço, espalhando a cera com um pedaço de pano, ajoelhados e de olhos bem abertos, para que não restasse um só fragmento de chão sem o brilho que a minha mãe tanto prezava.

Dividi o quarto com Beto, o mais velho dos homens, e com Alexandre, o mais novo, de tão doce lembrança. Socorri, em algumas madrugadas, minhas irmãs Martha e Kátia, que me acordavam, apavoradas, para enfrentar aqueles monstros que lhes ameaçavam a vida. Baratas, gente, baratas, que haveriam de ser venenosas e traiçoeiras, a lhes atacar na escuridão.

Os gritos, as risadas, os bate-bocas, as reprimendas, os beijos trocados com as namoradas, em finais de tarde, e até sussurros mais atrevidos, tudo deve estar ali, enclausurado, na casa que paulatinamente ganhou os sinais da inexorável modernidade: o muro baixo deu lugar a uma imensa grade protetora da família, o cadeado passou a ser obrigatório no portão de entrada do jardim, que foi coberto pelo cimento, rejeitando flores e plantas que guardara em tempos outros.

Eu sei, eu sei. Mais do que isso, eu vi que a velha casa da Buarque de Macedo já não há.

Mas o que há?

 

Chegou o momento mais aguardado pelos pistoleiros da modernidade
Cuidado! Está em curso o golpe do "voto nulo"
  • JEu

    Lembranças que ficam na memória de cada um para sempre… infância… tempos felizes, quando tudo é fácil e quase nada é errado… tempos em que ainda não entendíamos o verdadeiro significado de responsabilidade… então tudo é leveza… No entanto, devemos estar conscientes que, para os que aportam nesse mundo de agora, enquanto pequeninos, tudo talvez tenha o mesmo significado que teve para nós outros… E, assim mesmo, insistimos em dizer: tempos bons eram aqueles… e, saudosamente, acrescentamos: não voltam mais… Bom domingo, Ricardo.

  • Há Lagoas

    Boas lembranças.
    Por quantas vezes me pego sozinho com um leve sorriso no rosto e sou abruptamente chamado ao mundo real por meu filho ou esposa. Eles me acusam e querem saber o motivo de minha “aparência” juvenil? Lembranças, boas lembranças.
    E você, meu caro Ricardo, qual é sua aparência quando está trazendo a memoria fatos como esta deliciosa crônica?
    Um bom domingo a todos.

    • Joao TT

      HÁ Lagoas, na CIDADE da maçaýó ou no SERTÃO do curió?
      Bom D +, bom DANADO!!!

      Um BOM domingo, Ricardo!
      Na CIDADE, a casa TRUPICA sem cair!

      Já nos SERTÕES, o mato CUIDA – pé de MARACUJÁ enrama no TELHADO!

      * Lembro daquela JANELA/ Onde eu via o SOL se pôr/ Hoje as TELHA da varanda
      – É um pé de MARACUJÁ
      * CASA velha abandonada/ Enlinhada de CIPÓ/ Tem as marcas das ENCHENTES
      – Por ali já morou GENTE
      * O canto do meu CURIÓ/ Pendurado na VARANDA/ Onde já dancei CIRANDA … É a casinha da VOVÓ
      [ Casa Velha Abandonada ], Flávio José, _ http://www.letras.com.br/flavio-jose/casa-velha-abandonada

  • Paulo Sérgio Moreira

    Uma pérola dominical: eis a melhor definição para essa viagem no tempo a recordar momentos e pessoas que, para sempre, farão parte de sua vida! Abraços.

  • Joilson Gouveia Bel&Cel RR

    Hão de convir, todos os seus amigos e os milhares de leitores, que se nutrem desses preciosos relatos dominicais, mormente quando retratas o pretérito crudelíssimo vivido por todos, na indigitada “ditadura”; ou não?
    Como foram cruéis, difíceis, sangrentos, sanguinários, temerários e insuportáveis esses “tempos”: pessoas tagarelas, parentes, vizinhos e passantes transeuntes “assustados e assustadores” que nos ameçama todos com seus cordiais cumprimentos de bom dia, boa tarde e boa noite; hein Peninha!?
    Abr
    *JG

    • Joilson Gouveia Bel&Cel RR

      O TEMPO PASSOU E O TEMPO PASSARÁ! **
      Joilson Gouveia*
      O tempo passou e o tempo passará!
      Ai, ali e acolá ou em qualquer lugar;
      Ou onde brincastes e onde brincarás!
      Recordas com saudades deste e de outro rincão,
      Que os tem guardados no âmago do ser e de seu coração!
      Bem por isso, o tenho como amigo-irmão!
      O Tempo passou e o tempo passará!
      E quantas e tantas fotos mais; postarás?
      Como recordação de lugares, que passastes e passarás!
      Registrando-as na máquina o que está registrado na alma!
      Captados que foram pelas retinas de uma infância, ainda “menina”!
      Recordas – com saudosos suspiros-, e voltas no tempo, com serena calma!
      Ao lugar por onde o tempo passou e onde ele (o tempo) passará!
      Enquanto presente e contente a tudo registrar!
      O tempo passou e o tempo passará!
      Quando tudo acabar; alguém verá e recordará!
      E a todas essas lembranças guardará!
      E para sempre, o tempo passou e passará!
      Mas, certamente, a outros inspirará!
      E que ele possa rimar ou glosar sobre esse tempo que passou e ao que passará!
      Abraço forte e grato por inspirar-me!
      Pois, saibas, também brinquei nesse lugar!
      E aqui vou terminar – já que o tempo passou e o tempo passará!
      Abr
      *JG
      ** Dedicado, postado e editado no home face de um dileto parceiro e fraterno amigo que nos deu o mote.

  • Rocha

    Recordar coisas boas da vida, é viver momentos de paz!!!

  • Lucia Montenegro Mota

    Sinto muitas saudades daquele tempo da Buarque de Macedo, onde morei 50 anos, época em que as ruas ainda eram de terra batida e o trem com seu apito inconfundível e estridente passava várias vezes ao dia, e mesmo assim eu gostava. Eu, D. Lúcia Mota, vivi nessa rua e presenciei ao longo dos anos as mudanças que ocorreram. O progresso estava chegando!

  • Ednaldo Fernandes

    No último mês de julho, fiz 59 anos de existência, essa história contada pelo autor da matéria, me fez lembar a minha infância e juventude na velha e querida Penedo; na minha casa, tínhamos um pouco mais irmãos do que na casa do autor, rssssssss….éramos dez, à algazarra era grande, o dia inteiro, principalmente na hora de dormir, providencialmente separados, homens e mulheres, todos em seus quartos, por motivos óbvios, hoje só tenho uma irmã, que reside em Penedo,Eliene Fernandes, professora aposentada e que montou um “atelier”, por trás do “Circulo Operário,no qual vende peças de artesanato, criadas por ela, por sinal, de muito bom gosto, crescemos criamos amizades e uma delas, me traz boas lembranças, quando depois das noitadas, principalmente às sextas feiras na Imperial Sociedade Phil’larmônica, instalada no pomposo prédio do primeiro teatro de Alagoas, o Sete de Setembro, quando participávamos das famosas, discotecas, como morava um pouco distante, saíamos de lá, por voltal das 5 horas da manhã, mais ou menos uns três ou quatro amigos, Eu Ednaldo Fernandes, Germano Regueira, hoje proprietário do Restaurante “Oratório, na beira dos Rio São Francisco,Joninhas Sampaio, Enildo, o “Broa” “Tico”, hoje o Dr. Tico, Procurador do Município e íamos dormir no sobrado do Sr. Manoel Bispo, pai de Dona Cleonice, que vem a ser mãe do meu amigo Carlos Alberto, mais conhecido, como “Topy”, comíamos o que encontrávamos na cozinha e partíamos para o “socovão”, para quem não sabe, a parte mais baixa do sobrado, de uma escuridão de meter mêdo aos desavisados, local onde havia mais ou menos uma dúzia de camas; quando abríamos a pesada porta, éramos saudados, por uma dúzia de morcegos, dando rasantes, em nossas cabeças, a anarquia era geral, já estávamos acostumados, acendíamos às lâmpadas e os mesmos eram expulsos do seu “habitat”, para dá lugar aos guerreiros, que chegavam cansados da farra, nos esparramávamos, cada um em sua cama, com lençóis branquinhos e travesseiros macios, apagávamos literalmente e dormíamos o sono dos justos, para acordarmos por volta das 16 ou 17 horas e começarmos tudo de novo. Daquele tempo, graças à Deus restou uma grande amizade, não só com os que citei no meu comentário, mas com outros que encontro, quando das minhas idas à minha querida Penedo.

  • Zé MCZ

    Tentei atravessar os trilhos;
    O trem invisível me atropelou…
    Tudo bem!
    Estou voltando pra casa mesmo!

    Cuidado!
    Muito cuidado!
    Ele está retornando, agora como VLT!(acho que é isso…)

  • Jordan Costa

    Bom mesmo é saber que de tudo de bom que vivenciamos na Rua Buarque de Macedo, e mesmo os momentos mais difíceis, assim como foi a perda do meu grande amigo e irmão, Alexandre Mota, não poderá ser “deletado” pelo tempo, pois ficará para sempre em nossas memórias, sendo administrado pelo nosso bom senso.

    A casa onde você viveu por mais de vinte anos se tornou um centro comercial com salas preparadas para consultórios, mas desde a sua inauguração, aí já se vão oito anos, nenhuma sala foi alugada. Hoje funciona apenas uma agencia de turismo que já foi assaltada três vezes.

    Quanta saudade da “Maria Fumaça”, de correr atrás dos troles e pegar carona.A Buarque de Macedo nos reservava surpresas e muitas aventuras todos os dias.

    A obra de implantação do VLT já iniciou, e como todas as intervenções para melhorar o transporte de massa nessa cidade sempre carece de planejamento e de ENGENHARIA TRÁFEGO, confesso que ainda não sei quais os benefícios que esse transporte trará para a população da região do Centro-Jaraguá.

    • Marcos Vinicius Cabral

      É Ricardo Mota, eu conheci a sua casa e sua família no final dos anos 90, através da minha esposa, a professora Jô, artesã. Muitas vezes ia buscar e imaginando aquele bairro como era.
      Hoje quando passo, vem a lembrança, mas não é a mesma, foi um consultório médico, fechou e estava à venda.
      Abraços à todos e lembrança a D. Lúcia.

  • Adriel Batista Correia de Melo

    Maceió,25 de setembro de 2016

    Ricardo.

    Me dá vontade de entrar em uma casa desta e só sair em um caixão de defunto.

    Adriel

  • Jefferson Villanova Barros

    Lembro muito bem de tudo que você descreve, caro Ricardo. As férias que passei na casa da minha avó Dona Ana de Melo Barros, que morava na Rua Dr. Costa Leite, esquina com a Av. Buarque de Macedo, defronte a Fundição Alagoana. Dos colegas do Colégio Estadual, Hideraldo, os irmãos Luis e Eduardo, Fabio, Miguelzinho; a mercearia do seu Frutuoso, o Paulo eletricista, a missa aos domingos celebrada pelo Padre Petrucio na igrejinha de Nossa Senhora do Carmo. Velhos tempos, velhos dias…

  • Victor Genovese

    ÇIçalmeida vai trazer esse passado glorioso de volta!!!!, sokinão,
    estrupulias mil, trará o côco de roda , sokinão..
    o carnaval “EdsonBananólico” de Rua , sokinão,
    As lagoas periféricas, sokinão..
    A cidade com suas centenas de terreiros , dessa vez sem o quebra das elites , sokinão…
    Trará , Sidney Vanderley , com F de Fogo e Fuzil, sokinão..
    Marcos de Farias costa com Per os , Per anum per vaginam, sokinão
    Nô Pedrosa e seu eterno anarquismo, sokinão,..
    Joíinha de Viçosa, esperando eternamente a revolução …no bar do ladrão…sokinão
    Magela com seu bigode russo , e seu novo livro..esse sim!!!!
    A poesia do absurdo , com Cuba lançando foguete,,quero ver Cuba Lançar…sokinão

  • José Verçosa Cavalcante

    É, eu também morei na rua Buarque de Macedo, onde meu irmão Edmilson era proprietário da MERCEARIA CONFIANÇA e eu como um irmão mais novo tomava conta da mercearia, pois meu irmão era bancário (antigo Banco Econômico). A mercearia ficava vizinha a um antigo sítio que logo depois foi construído o hiper Bompreço, hoje desativado. Em frente a mercearia existia uma ponte sobre um córrego. Bons tempos, embora escassos de tecnologia, lembro que eu sempre ia ao Clube Fênix assistir filmes que era a minha diversão para tirar o estresse da semana, onde aturava as conversas de “bêbados”, kkkkk, que residiam na Rua 7 de setembro, dos quais pouco me lembro dos nomes e o que me vem na memória agora é o Leite alfaiate, mas tudo gente decente e que me divertia muito, saudades….

  • Eduardo Lopes

    Há sim. Essa velha casa é imortal.

  • Vida que segue

    Ricardo, porque mudaram tanto os conceitos de vida e Família? Bons tempos que jamais voltaram.

  • Santos

    Caro Ricardo Motta, você pode não se lembrar, meu nome é Jarbas,(jogamos bola na casa do
    Waldemar Correia chamava-mos você de Peninha), frequentei sua casa
    pois estudava com seu Irmão o Beto para enfrentar o vestibular, nasci e fui criado nesta Rua só que perto da Comendador Leão, onde hoje é o Pan Salgadinho tinha um campo de futebol
    boas lembranças.

  • Joilson Gouveia Bel&Cel RR

    ERRATA AO ANTERIOR*
    Hão de convir, todos os seus amigos e os milhares de leitores, que se nutrem desses preciosos relatos dominicais, mormente quando retratas o pretérito crudelíssimo vivido por todos, na indigitada “ditadura”; ou não?
    Como foram cruéis, difíceis, sangrentos, sanguinários, temerários e insuportáveis esses “tempos”: pessoas tagarelas, parentes, vizinhos e passantes transeuntes “assustados e assustadores” que nos AMEAÇAVAM a todos com seus cordiais cumprimentos de bom dia, boa tarde e boa noite; hein Peninha!?
    Abr
    *JG
    P.S.: É, pois, a prova cabal de que éramos e fomos felizes, nesses soturnos tempos “ditatoriais”, consoante se vê dos testemunhos vivos em seus saudosos comentários aqui registrados, ainda que certos “contrários sinistros” tentem dizer uma outra “estória”!