Se havia sol naquela manhã, não se deu conta. As árvores espalhavam folhas sem cor pelo caminho. Elas, pálidas, descoradas, tortas ou sem forma, já não guardavam vida. Era assim que as via com seus olhos carregados de insônia e desprezo.

Tudo parecia inútil: o tempo, as pessoas, os carros, as casas, os trilhos… Será que ainda havia trilhos sobre os quais monstros de ferro passariam esmagando sonhos sem quaisquer remorsos?

A meninada em algaravia, saindo da escola, só foi notada, ainda que com desdém, porque uma das garotas tropeçou nele de forma acidental, soltando um gritinho agudo e insuportavelmente jovem, que lhe pareceu de injustificável alegria.

O mundo era cinza, sentenciou – um mundo em cinzas.

As imagens confusas que lhe povoavam a cabeça vinham de algo que não conseguia capturar ou entender com uma nesga que fosse de clareza. Havia gente, sim, não muita, não mais do que uma, a lhe vazar os olhos de dentro para fora.

Naquela caminhada de mirar baixo, passos ligeiros e erráticos, sem distinção do que poderia ser uma linha reta, tudo se prestava ao descarte. Era excessivo, postiço, sem começo ou meio, clamando por um definitivo fim. Se a paisagem se apagasse, nenhuma falta lhe faria.

Tudo cinza, tudo em cinzas.

Na praça, para quem passasse naquela hora, uma miríade de babás se exibia empurrando carrinhos carregados de um futuro que não lhe trazia qualquer interesse. Praguejou entre os dentes travados, a saliva sendo expulsa da boca seca, fechada à saída das palavras. Era só uma opressiva existência.

Que loucura seria aquela, num dia qualquer da vida de um sujeito beirando os tantos anos, a quem nada mais haveria de surpreender, ou trazer o viço da novidade, algo capaz de sequestrar a sua atenção para o desejo do porvir?

Cinza, tudo; todos.

O mundo, que lhe exigia que assim fosse.

Chegou à porta da casa por puro instinto, animal faminto, primevo, impelido pela sobrevivência. Puxou o trinco determinado a desconhecer barreiras que travassem seu avanço ao quarto onde ainda dormia uma mulher desprovida de cicatrizes na alma.

Tomou-a com ânsia, mas com tanta delicadeza que parecia temer que aquele corpo vigoroso se estilhaçasse ao seu toque. Quando ela abriu os olhos, preguiçosamente, ele sentiu um leve sopro a espalhar as cinzas que lhe embaçavam as cores.

Que a culpa fosse queimar no temido mármore – não mais ele.

Invadiu-a com a convicção dos suicidas.

 

Há muito exagero nas críticas aos projetos do senador Renan
Rui Palmeira: "Eu estou preparado para o que der e vier"
  • JEu

    Bom dia, Ricardo. Realmente, viver a vida sem um objetivo superior, sem abraçar os semelhantes como irmãos e irmãs de romagem terrena, rumo a alguma situação diferente desta, é perder-se no emaranhado do materialismo e, aí, só decepções e amarguras, somente aliviadas pela sofreguidão do amor físico… é mesmo uma pena viver assim. Bom domingo.

  • Rana

    Belo desfecho para uma história cinza.

  • sebastião iguatemyr cadena cordeiro

    MAIS UM BELO CONTO,MATÉRIA. . . A VERDADE EM TONS DE CINZA . . . BACANA !