– Você se lembra de mim?

Estou eu ali, de novo, frente a frente com um passado que me parece tão remoto a ponto de não ter existido. Por vezes, forço a minha memória fisionômica, até bastante razoável, e o resultado vem de imediato:

– É claro que sim.

Mas esta verdade nunca há de bastar, e aí vem a definitiva lancetada na alegria fugidia:

– E qual é o meu nome?

Seria inútil demais mentir, até porque as possibilidades beiram o infinito. E eu me dou por vencido, trazendo de volta uma vergonha sem a qual eu passaria bem melhor.

O fato é que, para má sorte da minha parca memória, estou envelhecendo publicamente, com muita gente conhecida acompanhando dia após dia, e sem a devida reciprocidade, em um estado pequeno, em uma cidade que incha, mas que me empurra para os mesmos lugares, sempre: talvez pela minha preguiça de buscar novos horizontes geográficos, tendo as raízes enfiadas em terreno estreito, embora carregando a tola esperança de desconhecer limites na imaginação.

As minhas lembranças, confesso, não deixam espaços para nomes, datas e otras cositas más, fundamentais para a vida em comunidade e, inclusive, em família. Esqueço, por exemplo, aniversários de amigos e parentes mais próximos, e só redescubro nomes e apelidos de primos, primas e agregados, a quem não vejo há algum tempo, quando me socorro da memória da minha mãe, um primor aos 85 anos de idade.

E não é que o acaso, nem sempre um companheiro solidário, me ajudou bastante no âmbito doméstico? Vejam: minha mulher e meus filhos aniversariam em datas que dispensam exercícios mnemônicos: 12/02; 23/03; 24/04.

Ufa!

E olha que essa desmemória, que não foi me apresentada agora e só deve piorar daqui para adiante, tem me dado também algumas boas alegrias. Já faz algum tempo que tenho optado por reler bons livros com os quais já convivi, rever filmes que me emocionaram lá pra trás, e eles me oferecem um sabor de deliciosa novidade, que não coube no baú sem alças da minha vida passada – e única.

Se deles lembrasse como fazem os de memória prodigiosa, certamente não sentiria a mesma – e agradável – sensação que tenho experimentado com frequência. Está bem: nem sempre é assim, mas é melhor do que “quase nunca”. Aliás, dizem os antigos que muito boa memória é sinal de pouco discernimento. Não ter ambos, entretanto, não é vantagem nenhuma.

Imagino que não deve ser muito confortável guardar em detalhes tudo o que se viveu, se viu, se ouviu: não haveria espaço para a invenção, tão importante na construção de quaisquer enredos, ainda que seja impossível refazê-los ao gosto. Dá até pra arredondar, aqui e ali, sem que a verdade seja desprezada. Sim, porque o que haverá de mentira naquilo que for narrado, até a si próprio, o será tão somente por não ser verdade absoluta – um adjetivo que faz toda a diferença.

Mentir navega em outras águas: parte da própria verdade conhecida e nunca esquecida pelo mentiroso, que se torna um voluntário da própria – e não revelada – vergonha (excluo, aqui, os mitômanos e os profissionais da política, por desconhecê-la).

Razão há de ter, mais uma vez, Fiódor Dostoiévski, para quem o meio mais fácil para se lembrar de alguma coisa é se obrigar a esquecê-la, por incômoda.

É quando tanta falta nos faz a desmemória.

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