O dia, numa daquelas sempre normais semanas infindas das rotinas, surgiu monocórdio logo cedo na sala de aula. Até então não tinha ainda despertado para tantas horas de trabalho que aquela terça-feira tinha-me reservado. Quando, pouco acordado, ainda em estado de pasmaceira, fiquei surpreso em ser pego meio sem jeito na fala de uma aluna. Mesmo com toda a história de quem, há 33 anos, administra habituais conteúdos de redação, principalmente, a fala juvenil daquela menina de olhos inquietos surgiu como uma força extraordinária nos meus tantos anos de giz (mesmo com pincel e computador, o giz sobrevive como uma metáfora imperdível). Sim, depois de décadas, vivemos a vida no automático, seja no trabalho, na família ou no boteco. Tudo se repete quando já somos autoconfiantes, seguros dos acertos, esquecidos dos erros e boêmios inveterados. Não mudamos de mesa, nem de garçom, com o tempo.

Mas voltemos à terça. Não tanto maldita como a segunda. Mesmo assim, ainda enterrava os últimos suspiros da ressaca, moral que seja, ou pela ociosidade inerte do domingo ou pelo longo gosto do gole ininterrupto no sábado. Paremos com essa prolixidade. Sejamos breve. A leitura. Ela mesma. A leitura. Foi disso que ela falou.

– Professor, por que não lemos em sala?

– Como T…? Lemos o tempo inteiro. Crônicas, editoriais, meus textos, temas, artigos…

– Você não me entendeu, Profe. Sei lá, parece tudo tão rigoroso.

– Não teria que ser? Precisamos do estudo. “Ela desaprendeu?”

Como não aguçar os ouvidos para escutar tamanha sinceridade? A T… sacudiu uma fala direta sobre A Leitura. Não aquela feita com os olhos, forçada à arguição daqui a dois meses, feita para uma questão de vestibular, amarrada como exercício, solicitada como matéria, imposta como conteúdo, definida como proposta temática.

– Quero A Leitura – continuou – Com “a e l” maiúsculos. Ler como se fosse uma necessidade corporal, de forma irresponsável, livre, com a alma solta. Uma Leitura (ela insistia na inicial maiúscula) com os olhos da agonia, sem medo, nem compromisso com a nota. De um jeito franco, sem forçar a barra. Bater o olho na estante da livraria e descobrir que você tem tudo a ver com aquilo. Quero me tornar leitora de tudo. Ah, aprendi uma coisa. Você pode até não acreditar em minha idade. Aprendi a gostar do silêncio. Pode? Logo eu que adoro uma zoada. Percebi que o silêncio é possível. Mas acho que pra gostar dele, gostar mesmo, você tem que passar pela experiência da leitura. Não dá pra sentir uma história, uma frase, um personagem sem o silêncio. É como se eu vivesse sob sigilo, às escondidas, em segredo, em intimidade. Não é um luxo com 17 anos (risos…dela)? Que me perdoem o Eddie Vedder e o Dan Reynolds. “Quem?” Até então não conhecia as bandas de rock Pearl Jam e Imagine Dragons e, claro, os seus líderes. Depois entendi que ela tinha se desculpado deles como alguém que tivesse cometido uma blasfêmia.

Onde ela foi buscar tanta ideia? Ela é leitora, imaginei.

Continuou:

– Profe, passo o dia todo procurando uma vaga pra ler alguma coisa. Quer ver? Basta tocar para o intervalo que eu abro umas páginas. Dá uma dor quando não leio! Sabe aquela sensação de ficar órfã? De sentimento de culpa? É assim que me sinto. Você já passou por isso? (silêncio). Não sei se você percebeu (Sim, “você”. Um tratamento de que gosto. Torna-me, digamos, mais recente na idade). Li o Cem anos de Solidão, do Gabriel G. Marques. Meu, lembra? Você me indicou ano passado. De lá pra cá, me entreguei. E olha que não foi pra fazer uma prova. Gostei, veio. O incrível é que passei quase oito meses sem tocar nele. Tinha outros compromissos. Passava e ele estava lá, na bancada do meu quarto. Nem aí. Foi quando fiquei uns dias doente. Coisa tola, acho que foi uma virose. Um pouco melhor, já, decidi abri-lo. Profe, desse dia pra cá foi a febre. Já desejei não terminar um livro de tão bom que era. Fiquei lendo bem devagar pra não acabar. Era como se tivesse que dar adeus a um amigo, para sempre. Prometi ler novamente, como se esse amigo me enviasse uma mensagem e dissesse que estava voltando. Gostaria de contaminar meus colegas.

– Você me contaminou.

Meses depois, o mormaço soprava impiedoso naquela tarde de quinta-feira. O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger, despediu-se de mim. “Era como se tivesse que dar adeus a um amigo, para sempre”.

Osvaldo Epifanio (Pife)

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  • Jailson

    Caro Ricardo, mais uma vez o Pife nos presenteia com seus belíssimos textos. Confesso que com sua “aposentadoria” da sala de aula nossa meninada fica órfã do seu entusiasmo e incentivo à leitura.

  • JEu

    Caramba, que texto…! Fiquei até meio que chateado quando terminou… Isso é vida… é como se o sangue corresse mais rápido pelas veias, inundando o corpo todo… Quem ainda não descobriu a leitura… não dessas de jornais, revistas, etc; mais de um bom livro (pode até ser digital), creio que não pode entender o sentimento de T… Obrigado pelo texto. Bom dia de natal…

  • Cícero Lins dos Santos

    Texto lindo e encantador, Ricardo. Nós professores, devemos deixar contaminar-se pela leitura. Nossos alunos, são brilhantes e cheio de ideias e, sobretudo, apaixonados pelo saber e a leitura. Maravilhoso!

  • zelia Cavalcanti

    Só mesmo esse dia de Natal para me dar um texto primoroso e esse sentimento de que a juventude, “futuro do pais” , não é apenas arrocha e sei lá mais o quê.

    Isso é muiiiito bom!

    Feliz Natal Pife, Feliz Natal Motinha!

  • Frederico Farias

    Parabéns, Grande Pife, você sempre nos contaminando com suas experiências e reflexões. Obrigado por mais esta.

  • Wellington C. de Oliveira

    Valeu Osvaldo! Relembrando agora nosso tempo na Fundação Bradesco (trabalhando) e o tempo gasto por você com meu filhos! Fique certo que eles aproveitaram e somos agradecidos. Um abraço!