O sempre especial Elinaldo Barros, mais uma vez, conseguiu aguçar a minha curiosidade de cinéfilo: ele anunciou a estreia nas salas de Maceió do filme Os Maias, baseado na obra de Eça de Queiroz.

Minha primeira indagação: como seria possível levar para a telona uma saga com tantos e tão impressionantes personagens?

Sim, porque há histórias que só se resolvem no campo das palavras, e o cinema nos retém, principalmente, pela sequência de imagens – com um bom roteiro, é claro.

Cheguei logo à conclusão de que isso se devia mais ao impacto que o livro do escritor português havia me provocado já à primeira leitura, conquistando um leitor ávido para embarcar no enredo.

Eça de Queiroz, creio, tem uma qualidade raríssima como escritor: ele vai construindo os seus personagens aos pedaços, de modo que, ao final, os vemos, fisicamente, do jeito que eles são (ou imaginamos que são).

Ainda muito jovem, me deparei com Os Maias e me fiz em paixões por Maria Eduarda, não menos do que Carlos, com seu amor impossível – uma relação incestuosa (não dá para contar mais).

Como esquecer a sensualidade da Condessa de Gouvarinho, amante do mesmo Carlos, com traços de uma beleza voluptuosa, cabelos ruivos e pele clara, a quem também dediquei horas ardentes de puro desejo?

Eis que são assim os grandes escritores, a nos capturar para dentro de suas criações, engendradas em mentes a quem invejo, por puro despeito.

É verdade que O nome da Rosa foi levado ao cinema de forma bem satisfatória – o livro continua insubstituível -, ao valorizar apenas uma parte do intrincado enredo de Umberto Eco (de quem recentemente li O número zero, essencial, me parece, para todos os jornalistas e interessados nos bastidores – às vezes, cínico – das redações).

Mas fico a imaginar, por exemplo, as dificuldades de um cineasta ao fazer as inevitáveis escolhas para filmar uma das grandes obras de Dostoiésvski, o russo imortal que se esmerou em compor a psicologia dos seus personagens lentamente, em camadas, até que eles nos apareçam por inteiro, com suas baixezas e grandezas, sempre “demasiados humanos”.

Tenho uma terrível vocação para a submissão aos grandes livros. Torno-me, quase que sem sentir, um cão dócil, amarrado pela coleira, até o ponto final, quando lambo suas orelhas e posso, então, buscar outros donos.

E não há, aqui, de se falar em estilo, previsibilidade de construções literárias. O ótimo Philip Roth, uma descoberta mais recente, também me toma como animal facilmente domesticável.

O escritor americano, diferentemente dos que já foram aqui citados, é impiedoso: descarna de pronto seus personagens, que ele nos apresenta em fratura exposta, ossos à mostra, sem deixar de surpreender a cada momento em que nos arremessa um soco no estômago – e são vários, sempre.

Levá-lo ao cinema?

E por que não?

Sei que isso já aconteceu com A Marca Humana, por exemplo. Mas, desconfiado, e talvez por ignorância, acredito que o êxito terá sido, no máximo, próximo à Lavoura Arcaica (de novo, o incesto), do maravilhoso inventor de destinos – e agora oitentão – Raduan Nassar. É ler o livro, sugiro.

Um exemplo claro dessa quase impossibilidade, se me permitem a repetição, é Grande Sertão: Veredas, o clássico universal de Guimarães Rosa, mineiro de Cordisburgo: todas as tentativas cinematográficas sempre me pareceram vãs.

Só quem sofreu as dores e dúvidas do jagunço Riobaldo, página a página, há de entender a distância entre “intenção e gesto”, quando as palavras parecem não ter tradução possível na linguagem do cinema.

E, para mim, é impossível dizer do amor sem lembrar Diadorim.

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  • Há Lagoas

    Os monstros da literatura não se dobram com facilidade a sétima arte.
    Já com relação as mazelas e vicissitude dos personagens, qual de nós não possui alguma inclinação maluca?!
    Os personagens de cada romance descrito fazem parte de nosso cotidiano, sem o estilo poético tão peculiar de cada autor.
    Que tenhamos um bom livro para ler neste final de semana.
    PS: se permite uma humilde sugestão, Ricardo: A Miséria da Teoria ou um Planetário de Erros de Edward Palmer Thompson, este livro foi um divisor de águas para mim…

  • JEu

    Todas essas obras literárias são escritas por autores de escol, predestinados a cumprirem papel de importância nas sociedades em que vivem e, até, irem muito além de suas fronteiras, pois a “idéia” e o “ideal” não possuem limites… contagiam onde se apresentarem. No entanto, gostaria que se escrevessem mais sobre os motivos que levam o ser humano a comportamentos que trilham vias contrárias à sua própria consciência, como é o caso dos incestos e outros desvios da personalidade…. Sócrates (mesmo que seguidor das idéias de Tales de Mileto) disse, um dia: “conhece-te a ti mesmo” no sentido de que, conhecendo-se, o ser humano pudesse avaliar suas reais necessidades de construir a paz de sua consciência, vivenciando o respeito a si próprio e ao outro… Estão aí, nos dias que correm, os exemplos e as exortações de um outro predestinado a trazer um pouco de luz nas trevas da corrupção atual: o Papa Francisco (sem importar com as questões meramente teológicas das religiões)… Ótimo tema para reflexão neste domingo. Bom dia Ricardo.

  • Nanda

    A palavra continua sendo o principal caminho de expressão da arte humana. Os escritores recriam a vida conlhendo-a da própria vida. O cinema emociona e nos faz pensar; as obras literárias nos fazem, além do dito, imaginar.
    Mais uma ótima crônica.

  • Fábio

    A literatura é a maior de todas as manifestações criativas humanas. Onde o cinema bebe resta ainda muita água para matar a nossa sede.

    Bom fim de domingo.