Na verdade, eu nunca simpatizei nem um pouco com aquele rapaz que fica ali no semáforo próximo ao riacho do Sapo, entre o Poço e Jaraguá.

Sempre de boné, manquitolando devido a um defeito na perna, eu o via cercando os carros, quando paravam, com seu “limpador de para-brisa” e uma agressividade que me incomodava. Principalmente as mulheres temiam mais a sua aproximação, ficava claro.

O sujeito não pedia, “exigia” algum, fazendo cara feia e gestos de insatisfação, se não era atendido. Eu evitei, algumas vezes, chegar ao semáforo enquanto brilhava o vermelho só para não ter de trocar algumas palavras com ele, sempre rispidamente, como bem parecia merecer.

Lembro-me de tê-lo repreendido depois que ele reclamou – com gestos e palavrões – de uma motorista que lhe negara o que ele desejava “arrancar”, sem tentar cativá-la em nenhum momento.

Fui duro, a ponto de me recriminar em seguida (o que talvez não seja lá muito difícil). Mas fiz o que me pareceu necessário, assim concluí antes de seguir em frente.

Mas aí surgem aquelas ocasiões em que a nossa alma se veste de uma generosidade que quase nunca adotamos no cotidiano. Era noite, eu voltava da minha caminhada na orla, quando parei no mesmo sinal e me deparei com aquela cara fechada que eu tanto rejeitava.

Dei-me conta, então, de que já não o via há alguns dias, e, sem qualquer outra intenção, apenas perguntei por que ele havia sumido.

O rapaz abriu um imenso sorriso, de dentes estragados, feliz como eu nunca havia presenciado, e me disse:

– Eu tava doente. Agora já bom.

Dei-lhe algum trocado, e a partir de então passei a cumprimentá-lo, ainda que nem sempre dispusesse de uma moeda para presenteá-lo. Assim seguimos num rito de cordialidade mútua. Ele chegou a me garantir, com afeto, achei, que iria torcer pelo Fluminense, ao me ver com a camisa – suada – do glorioso tricolor. Pura gentileza.

Na semana passada, depois de uma nova temporada de ausência, estava ele de volta ao semáforo. Visivelmente mais magro, a bermuda que alcançava a sua canela fina – resultado da deformidade -, o permanente boné e sozinho. Sim, porque sempre andava ali por perto outro rapaz que tinha semelhante defeito na perna e que ficava quase todo o tempo sentado na calçada do outro lado da rua.

Mais uma vez, quis saber o motivo do seu desaparecimento. De novo, abriu-se aquele sorriso manchado, mas iluminado:

– O patrão notou que eu tava sem vim. É que peguei uma gripe muito forte. Passei duas semanas de cama.

O tempo, de fato, andou muito traiçoeiro em agosto. Avisei que não tinha nenhum trocado, mas prometi que estaria de volta no dia seguinte. Pouco antes de o sinal abrir, me perguntou se eu me lembrava do irmão dele. Eu confirmei, um tanto confuso, e a conversa ganhou outro rumo:

– Ele morreu de pneumonia. Eu gostava demais dele. Era meu irmão preferido. Trabalhava comigo no sinal desde que ele era desse tamanhinho (fez o gesto explicativo).

Depois de uma breve pausa, suspirou, tomou fôlego e balbuciou com voz embargada:

– Eu fiquei muito triste.

Antes de partir, dei um leve toque na sua mão.

Eu não soube mais o que lhe dizer, e ele não precisava me dizer mais nada.

 

Com apoio de Renan Filho, Marx Beltrão mira o Senado em 2018
Galba Novaes: "A Assembleia é um ambiente totalitário, anda pra trás"
  • Ricardo Líder Comunitário da Gruta do Padre

    Acabei de ler o texto, minhas lágrimas estão sem limites.

  • Zu Guimarães

    Como a gente aprende com os que nunca foram ensinados…!

  • JEu

    É a mais pura verdade: todo ser humano merece ser tratado com respeito à sua condição ser um ente integrante da humanidade. Principalmente se é um grande sofredor das injustiças sociais. Por mais rude, agressivo e ignorante que possa parecer, lá no seu recante mais íntimo reside um centro de sentimentos e emoções que, na maioria das vezes, não queremos ver, simplesmente para não termos que encarar a verdade de que somos todos responsáveis por tais estados de miséria. E, aí, aqui e ali nos surpreendemos com ações e demonstrações de sentimentos que não esperávamos. Quem viu no noticiário recente o caso do morador de rua que tentou salvar uma jovem das mãos de um malfeitor na porta de uma igreja e, por isso, morreu baleado, dando oportunidade para que a jovem pudesse correr, enquanto a polícia enfrentava o meliante, que acabou sendo baleado e veio a óbito, pode ver que essas pessoas que quase sempre não queremos enxergar, são seres humanos iguais a qualquer outro. Mais um bom motivo para refletir num domingo. Bom dia Ricardo.

  • ARTUR

    POR PIOR QUE SEJA O SER HUMANO ALGUÉM CHORA POR ELE.
    Certa feita minha esposa chegou em casa apavorada e narrou que ao falar que estava sem dinheiro este jovem arregalou os olhos e deu uma porrada na porta do carro, e descreveu que o olhar e o semblante do mesmo era aterrorizante e que não passaria mais por lá. E certo dia eu tive que passar pelo local e por azar o sinal fechou e o próprio se dirigiu para o meu lado eu já prevenido recusei seu pedido e se repetiu o tal olhar, confesso que tive medo do olhar aterrorizante e o semblante agressivo, olhei pra ele de maneira ríspida e graças a DEUS ele se dirigiu para outro carro. Depois desse episódio ele evitou o meu carro.
    Resumo: Este é o resultado de um país que não educa seu povo.

  • Há Lagoas

    Em tempos tão difíceis e com imagens tão dilacerantes, vemos muçulmanos – em sua maioria – não serem acolhidos por cristãos na Europa!
    É difícil amar – principalmente aqueles que nos aflige de alguma maneira – mas é crucial aprender amar, se colocar no lugar do outro.
    Bela cronica Ricardo.
    E parabéns pelo bom gosto futebolístico, é muito bom saber que ainda existe fluminenses, passei a admirá-lo ainda mais.

  • tania

    Triste!!!!

  • Paulo Barros

    Éramos todos humanos até que …
    A raça nos desligou;
    A religião nos separou;
    A política nos dividiu;
    E o dinheiro nos classificou.

  • Cássia

    As vezes julgamos as pessoas pelas aparências, sem saber o que se passa com ela, depois que temos algum contato, vimos que aquilo é só uma capa, e que essa pessoa tem sentimentos e que toda aquela grosseria é só uma auto defesa que ele criou…

  • Éder Rocha

    “Tristeza não tem fim, felicidade sim…
    A felicidade é como a pluma
    Que o vento vai levando pelo ar
    Voa tão leve
    Mas tem a vida breve
    Precisa que haja vento sem parar…”

    Vinícius de Moraes

  • Isabelle Melo

    Acredito que nestes casos, nos quais não há risco maior de sormos vítimas de violência, o sorriso e o nosso olhar, ou a troca de palavras, vale mais que as moedas dadas. Que por sinal, por mais que doa em nossa alma, não devem ser dadas, em minha opinião!

  • Eduardo Lopes

    Somos todos irmãos de uma tragédia, mas não há quem só tenha defeitos ou virtudes.

  • Elusival Briso

    Prezado Ricardo,

    Eu também conheço a realidade desse jovem. Fruto de um destino cruel que a sociedade finge não enxergar.
    Às vezes eu tinha a mesma impressão que você descreve, mas lhe dava aquela incômoda moeda que nos sobra.
    Fato engraçado aconteceu : eu ganhei uma moeda de 2 euros de uma conhecida que fizera uma viagem pela Europa que guardava na carteira. Certa vez ao agraciá-lo (ao irmão que morreu) com uma moeda, entreguei por engano a dita de 2 euros. Quando percebi já estava distante, mesmo assim retornei para trocar. Ao aproximar -me dele falou : “você me deu uma moeda estranha”!
    Sem mais, pois está na bíblia mais ou menos assim : dai com a mão direita sem a esquerda veja.
    Parabéns pelos textos reflexivos!

  • Izidoro

    Parabéns Ricardo Mota, isso é prova do ser humano que você é, sem falar das suas qualidades como jornalista. Hoje você me deu um exemplo de como ser uma pessoa melhor, obrigado e que Deus conforte esse rapaz que perdeu seu irmão querido. Rapaz esse que ao abordar as pessoas do jeito que você muito bem descreveu, penso que o mesmo nem tem noção e nunca foi instruído do que é cordialidade, educação meu caro Ricardo, culpa dele?, não, coitado, paga sem dever, fruto da dívida histórica, que os( nossos) políticos têm com o Estado e a população, infelizmente.

  • Williams Roger

    Resiliência, é o que falta a muitos!
    Há quem ache ou se ache que é mais que alguma coisa. Mas não somos nada.
    A menos que sejemos alguma coisa ante as nossas boas e fraternas obras!
    Pensemos nisso! Quem tiver sabedoria e discernimento!

  • j.Monteiro

    Meu caro Ricardo Mota, sob a frágil desculpa de que não podemos mudar o mundo, deixamos de fazer a diferença no nosso “mundinho”. Simples assim. Com o olhar opaco, e as vezes sob o manto da indiferença, começamos a rotular as pessoas, como se elas fossem coisas, qualificando-as conforme as aparências, e assim, lamentavelmente vamos nos “coisificando”.

  • Williams Roger

    http://noticias.band.uol.com.br/brasilurgente/video/2015/09/04/15598722/homem-assassinado-e-mulher-rendida-estavam-juntos-na-igreja.html?mobile=true

    Ainda tem ser humano que fala mal so porque e morador de rua, deu a vida por de uma pessoa que ele nem conhecia.. ‪#‎HEROI‬

  • Williams Roger

    Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos.
    JOÃO 15:13

    Pois toda a Lei se resume num só mandamento, a saber: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.

  • Nilton Santos da Silva

    Caro jornalista Ricardo Mota. Já há alguns meses o acompanho, apreciando seus escritos e seu programa no rádio. Devo lhe dizer que esse texto, relato de uma vivência humana, é de uma rara e bela sensibilidade. Minha respeitosa admiração, a você e ao seu interlocutor do semáforo. (Nilton)

  • REGINALDO

    SENHOR JORNALISTA: O QUE FALECEU ERA MAIS CALMO, O RAPAZ A QUE O SR. SE REFERE, É UM POUCO AGRESSIVO, MAS É A REALIDADE DA SOCIEDADE EM QUE VIVEMOS. NÃO SABIA DA MORTE DO IRMÃO. SEMPRE DOU MINHA AJUDA, EMBORA TEMPOS ATRÁS ELE FOI GROSSEIRO COM UMA AMIGA, O QUE ME OBRIGOU AO PASSAR POR ELE, PARAR E CHAMA-LO A SUA ATENÇÃO. HOJE SOMOS CONHECIDOS. VOU CUMPRIMENTÁ-LO PELO FALECIMENTO DO SEU IRMÃO.

  • Roseane Tenório Chagas

    “Onde não há amor, coloques amor e encontrarás amor” , essa frase de São João da Cruz me lembra você , a gentileza sempre esteve em você e esse texto é você todinho. Meu doce, gentil e inesquecível amigo, todo o meu carinho! Rose