Bem pra lá do fim do mundo
Quando garoto, eu já costumava andar pelas ruas cantando, ignorando que houvesse plateia a observar que ali andava alguém acompanhado de palavras e notas que só a ele, pequeno cantor, haveria de fazer sentido.
Não eram as músicas da moda, imagino. Estas eu ouvia em casa, repetidas vezes, até aprendê-las e incorporá-las ao repertório que levava para os demorados banhos num pequenino espaço que reservava a melhor acústica para as minhas exibições mais ousadas.
Nas ruas, não: era um canto baixinho, quase sussurro, mas que me acompanhava aonde eu fosse. Não olhava em volta, não dividia a atenção com mais nada. Compartilhava aquele momento apenas com a minha imaginação. Percorria imagens que me vinham à mente, desenhadas pela letra da canção, viajando por territórios desconhecidos onde eu me sentia perfeitamente integrado.
Lembro-me de, num final de tarde, parar na porta da oficina do seu Paulo, na esquina das ruas Buarque de Macedo e 7 de Setembro, e emudecer. De dentro da casa vinha uma afinada voz feminina – seria de Elizeth Cardoso? – com aqueles versos que me traduziam a mais profunda dor: “No Rancho Fundo, bem pra lá do fim do mundo…”
Fiquei imobilizado, escutando e sorvendo o sofrimento do “moreno”, que cantava suas mágoas “com os olhos rasos d’água”. De imediato, incorporei a sua história como se minha fosse. Aquela melancolia avançou no meu peito de súbito. O sereno que embalava a sua tristeza me contagiou, em meio ao sereno que também já tomava conta da cidade.
Tinha pouco mais de dez anos. Ainda não conhecia a saudade e os estragos que ela é capaz de provocar. Mas havia algo naqueles versos que me arrebatava, não fosse o prenúncio de vivências que ainda tardariam a chegar – e ficar.
Só adulto, soube da história da mais triste canção que já ouvi: ela nasceu “Grota Funda”, com uma letra que não é a que conhecemos hoje. Mas Ary Barroso, ao ouvi-la em um musical a que assistiu no início da década de 1930, resolveu dar-lhe novos e definitivos versos. Foi sua primeira parceria com Lamartine Babo, compositor já bastante popular, então, de marchinhas de carnaval.
Eis o segredo dos grandes criadores: traduzir sentimentos que haverão de ser de todos, mesmo que não os experimentem na própria alma, se doces, se amargos.
De vez em quando, a mesma dor do moreno, que um dia foi o “cantor da primavera”, me faz pegar a viola e caminhar bem pra lá do fim do mundo.
Vou sozinho, que essas viagens não permitem companhia.
Poucas vezes o menino foi tão prematuramente pai do homem quanto naquela esquina do Centro de Maceió.
SEBASTIÃO IGUATEMYR CADENA CORDEIRO
VOU DIZER O QUE , ANTE TÃO BELO TEXTO QUE NOS
REVOLVE O INTERIOR ? VOU PARODIAR O INESQUECÍ-
VEL E SAUDOSO JUIZ DE FUTEBOL E COMENTARISTA ,
MARIO VIANNA ( FALOU , TÁ FALADO ! ) : GOL LEGAL !!!!
maria auxiliadora araujo
Pura poesia e, como você mesmo diz ‘traduz sentimentos que haverâo de ser de todos, mesmo que não experimentem na própria alma …’ fez-me lembrar do meu tempo de colégio quando colegas, vez por outra, pediam para que eu fizesse uma poesia para o namorado ; eu ficava intrigada depois, como eu podia escrever sobre um sentimento que não me pertencia ? .mas fazia .Eita espaço que nos faz revolver o baú de lembranças !.
vera
Belo e poético. Também viajei, lendo-o, “bem pra lá do fim do mundo”.
Luiz Carlos Godoy
“No rancho fundo bem pra lá do fim do mundo
Onde a dor e a saudade contam coisas da cidade”
(…)
Cada vez mais a verdadeira música sertaneja de raiz vem perdendo “corações e mentes” para “música sertaneja” calça apertada.
Por enquanto ainda temos algumas “tábuas de salvação”, como os “dinossauros” Rolando Boldrin (inigualável contador de “causos”) e Inezita Barroso (89 anos de lucidez e alegria):
https://www.youtube.com/watch?v=R94Lzs7vM0E
http://tvcultura.cmais.com.br/viola/videos/inezita-barroso-viola-minha-viola-bloco-1-09-03-2014
Resposta
Meu caro tricolor Gogoy:
Não perco um programa aos domingos.
E amanheço mais feliz.
Grande abraço,
Ricardo
Sylvio De Bonis Almeida Simões
Muito legal, mais uma vez. Obrigado!
Arísia Barros dos Santos
Tão bonito, Ricardo!