A última vez em que eu te perdi
Por ela, eu seria capaz de viver.
Vê-la assim, no entanto, cambaleando, os olhos opacos varando uma tristeza seca, dura, a sandália arrastando um peso invisível, incompatível com a elegância que ainda carregava, isso não me fez nada bem.
Era como se uma página do imaginário livro da minha história tivesse sido manchada por uma tinta grosseira, impossível de se limpar. Restariam, apenas, pedaços de palavras, garranchos incompreensíveis.
Não, não se tratava da mesma coisa, da mesma pessoa, qualquer um deduziria. Por pura ignorância sobre o que era o seu passado, devo lhes dizer.
Desde muito cedo, ainda, quando a menina se escondia por trás de uma timidez persistente, ela atraía os nossos olhares quando passava. Deveria sentir o peso da gula, do desejo, por sobre o seu corpinho em formação, mesmo que a composição final se anunciasse uma obra dos deuses quando imitam os demônios.
Eu estava ali entre tantos, é bom dizer, de uma turma que foi crescendo à medida que ela se expandia, em busca de seu espaço no mundo. Tudo como se, finalmente, arquiteto e engenheiro tivessem se entendido sem precisar fazer cálculos reparadores ou ajustes: o projeto era perfeito, dentro do inesperado.
É claro que eu nunca me esqueci da noite em que nos tocamos levemente, displicentemente, e, para mim, lamentavelmente, sem qualquer intenção da sua parte. O roçar da penugem da sua coxa no meu braço, tão sutil, me provocou um choque de uma voltagem mortal. Sentados no mesmo sofá, nos aproximamos a ponto de sentir a sua temperatura, numa intimidade que a minha imaginação transformaria, logo em seguida, na mais tórrida paixão. Uma das melhores mentiras que eu já vivi.
Agora, ela parecia ter se perdido de si mesma. Um olhar sem viço, fosco, um corpo de boas curvas, ainda, mas que já não prenunciava perigo.
Parti com a certeza de que teríamos nos encontrado, ali, pela última vez. Não mais a veria, nem ela a mim, ainda que tropeçássemos um no outro pelas ruas. A imagem de agora borrara definitivamente o quadro de beleza e gozo.
Ah, por que o amor nem sempre acontece?
Pela mesma razão pela qual ele às vezes acontece.
Stephane Fagundes
Perfeito!!
SEBASTIÃO IGUATEMYR CADENA CORDEIRO
EITA , MATÉRIA , VOCÊ SE INSINUA COMO O MESTRE
DO PLATONISMO DIALÉTICO ! MUITO BEM , COMO SEM-
PRE , ÔMI ! AQUELE ABRAÇO !
MARIA
Que lindo texto! O tamanho de sua beleza é proporcional à curiosidade que fiquei ao terminar de ler. Quem será?
maria auxiliadora araujo
È o que sempre digo aquí, no espaço dos domingueiros : você brinca com as palavras, com a imaginaçâo, expõe a realidade e nós, leitores, ficamos muitas vezes atônitos ,com a força impressa aos seus textos , com o “faz de contas” que é próprio de quem sabe fazer…Muito bom domingo !
Cristina Ruffo
Em seus relatos tão bem escritos viajamos e os dias tornam-se melhores. Mesmo quando escreve sobre política, ainda assim vê-se o homem que está por trás das palavras. Parabéns e obrigada por nos brindar nestes domingos da vida com crônicas tão agradáveis e poéticas.
mirya tavares pinto cardoso ferro
Seu texto desperta sempre o melhor dos sentimentos!
Ana
Nossa a imaginação foi a mil, como se quisesse saber mais….isso foi excitante, kkkkk
Ana Maria Quintela
Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
-Eu soubesse repor_
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!
Manuel Bandeira
Joilson Gouveia Bel&Cel RR
Provocastes, despertastes, aguçastes ou atiçastes e açulastes aos curiosos desejos e vontades das leitoras ávidas em descobrir sobre a encantadora “felizarda e heroína” do teu conto dominical, e que encanta a todos e todas, os teus contos e em todos os cantos! Parabéns!
Abr
JG
antonio xavier
“Nada se cria, nada se perde…” É a eterna impermanência!!!
Martins
Lembrou-me um trecho de Olhai os lírios dos campos, de Érico Veríssimo, mas imagino ser uma experiência própria de Ricardo Mota.
José Jorge
Você recordou o tempo na travessa França Morel, ah se pudesse voltar!
Antonio Carlos
Perfeito o texto. Quem de nós não já viveu esta passagem. Muito bom . Grande abraço. Relato muito poético. Valeu. Vida que segue.
Glorinha, que não é a Gadelha
Ai, Ricardo querido, como é te ler… Tô todo domingo, ou segunda-dominical, passeando com meus olhos sobre sua prosa. “A última vez que” lhe vi já havia em mim uma saudade doída. Imagine agora que nunca mais te encontrei…
“Bueno”… Esses amores desacontecidos… Ah, esses amores que se escrevem pra não acontecer… Lindos, e tristes, demais. Mas penso que a “missão” deles é essa mesmo. Senão, não seriam desacontecimento e como poderíamos falar do desacontecido se, ué!, ele acontecer? (…)
Um abraço apertado em você, que é palavra escrita em minha vida.