– Ai meu Deus, ai meu Deus!

Aqueles gritos desesperados cortaram abruptamente os versos que eu vinha repetindo na memória, a voz suave e ligeira de Leila Diniz, em uma velha fita reproduzida por Milton Nascimento (no disco Sentinela), sobre os recortes de violinos ásperos, como numa serraria em trabalho:

“Brigam Espanha e Holanda pelos direitos do mar

O mar é das gaivotas que nele sabem voar

O mar é das gaivotas e de quem sabe navegar… ”

Minha atenção foi tomada por aquele homem sentado sobre a calçada, as mãos cobrindo-lhe o rosto, o pouco que lhe sobrara de humano (todos tememos ser vistos chorando), a bradar contra si mesmo.

Eram gritos lancinantes, que passei a ouvir detidamente, e pude observar que só eu me envolvera com aquele pranto exasperado. Um morador de rua, desses que só existem quando viram manchetes na soma dos mortos nas estatísticas precárias dos jornais.

Estava eu ali, de frente pro mar, um mar noturno, que sempre me pareceu mais profundo e perigoso, desde a minha infância praieira.

Já não era mais a doce voz da bela atriz, que morreu tão jovem, a batucar com insistência nos meus ouvidos e na minha mente. 

Mas havia sim, também, uma música, como tantas outras canções evangélicas, ao fundo. Não entendia bem o que dizia, os urros cortantes abafavam as palavras cantadas que vinham lá de uma jangada estacionada na areia. Ela movia as emoções humanas, aquelas ali, expressadas no desespero de um homem cuja alma pedia mais do que lhe era permitido.

Iniciei minha caminhada – sempre um momento de me visitar com alguma intimidade – sem conseguir esquecer o clamor da voz que se distanciava a cada passo dado. Imprimindo pressa, quase a fugir do pedido de socorro.

Corri, suei até pingar sobre a blusa de malha fina, sem me desvencilhar do lamento ruidoso. Um morador de rua, imaginei, chora por uma vida que não haveria de ser vida, se assim pudesse escolher.

Pode ter se abandonado por aí, em qualquer canto da cidade, até bater de frente com o imenso oceano – e como ele nos faz sentir pequenos, se o encaramos sem barreiras à vista.

O álcool, o crack, ou até mesmo a canção, haveria de tê-lo levado ao delírio, ao contato direto com a perversa realidade. Não importa! Seus gritos eram sentidos, vindos lá de onde quase sempre evitamos chegar.

Fiz todo o percurso, previsível e repetido, esperando me deparar de novo com o mesmo homem, cujos traços me foram impossíveis de divisar com alguma clareza.

Ao retornar ao ponto de partida, encontrei um corpo dobrado sobre si mesmo, deitado na dura calçada em posição fetal. Já não havia gritos, a música era silêncio. Parecia tranquilo, como se houvesse encontrado o único ninho capaz de abraçá-lo.

Assim como as gaivotas àquela hora, ele havia adormecido.    

Por que Vilela não deve dar mais dinheiro à Assembleia
Uma injustiça contra a Justiça
  • JEu

    Triste realidade essa nossa. Às vezes fico me indagando sobre o por quê de tantas misérias e dores… Isto me põe em risco de desacreditar de uma justiça divina, indefectível e imparcial… No entanto, alguma coisa me diz que se existem seres humanos que parecem “necessitar” passar por tais dores (até Jesus sofreu dores), a grande maioria delas poderia ser suavizada se seguíssemos o ensinamento do “amai-vos uns aos outros” e do “fazei aos outros o que desejarieis que vos fizessem”, ou seja, se nós, a humanidade, fossemos mais “humanos”, ou seja, menos egoístas e mais operosos no bem do próximo, com certeza veríamos menos miséria em nossas ruas. Tudo depende de cada um de nós, individualmente e coletivamente (como sociedade organizada em órgãos públicos). Vem aí 2014, e podemos começar a fazer a coisa certa, escolhendo direito nossos representantes e buscando, nós mesmos, fazer algo individualmente pelo nosso próximo. Para isso podemos apoiar o trabalho de qualquer das organizações filantrópicas (religiosas ou não) que trabalham para aliviar os sofrimentos de tantos em nossas cidades, como também fazendo alguma coisa nós mesmos, onde estivermos. É só dar ouvidos àquelas sábias palavras de Jesus…

  • SEBASTIAOIGUATEMYRCADENACORDEIRO

    BELEZA , MATÉRIA ; EU TAMBEM GOSTO DE RETRATAR EM UM TEXTO , OS FLAGRANTES DA VIDA REAL . HÁ
    MAIS OU MENOS UM MÊS , REDIGI UM TEXTO SEME –
    LHANTE (NÃO TÃO FORMOSO QUANTO O SEU , PORÉM
    MAIS PRECIOSO PARA MIM , QUE SOU MAIS SENSÍVEL
    AOS ANIMAIS ) INSPIRADO POR UM CÃO SEM TETO .
    OS DESDOBRAMENTOS DESSE FLAGRANTE PROVOCA-
    RAM UMA REVIRAVOLTA NOS MEUS SENTIMENTOS EM
    RELAÇÃO ÀQUELE ANIMAL QUE CERTA NOITE ME
    ACORDOU UIVANDO SOB A JANELA DO MEU QUARTO ,
    ÀS QUATRO HORAS DA MADRUGADA . ERA SOLIDÃO ,
    CREIO EU . . .

  • Noélia Costa

    Amigo jornalista Ricardo Motta,esse texto realmente ficou muito lindo!Vejo como uma reflexão de tudo que hoje vem acontecendo em nosso Estado tão sofrido,algumas vezes fizemos busca na cidade para conversar com alguns moradores de rua,e muitos falavam:professora não estou aqui porque quero,a senhora quer saber quem usa droga?a maioria,mais quem vende mesmo não mora nas ruas,vivemos esperando a morte,essa é a verdade.Meus deus a cada dia a coisa fica mais feia,o Crack avança de forma cruel,rápida,muito preocupante essa realidade,em 2014 vai ficar ainda pior!Que Deus proteja !Parabéns!

  • josé carlos santos

    Que sensibilidade, parabéns pelo seu belo texto.

  • maria auxiliadora araujo

    Interessante que enxerguei no seu texto tão triste, tão real , um cruzamento da irreverente dor que marcou a vida da Leila com o grito mudo daquele homem denunciando a igualdade dos desiguais…

  • Alice Veras

    Acompanho suas crônicas de domingo há alguns anos. Estou convencida, cada vez mais, do seu talento de escritor: sensibilidade, um olhar especial ao redor, a narrativa clara e a emoção em cada frase ou palavras. Espero o livro.

  • Pablo

    Pois é, meu caro Ricardo, muitos de nós poderiam ver, assim como você, a tal cena e também se tocar. O difícil seria contá-la com essa maestria e tanta emoção. Bom fim de domingo.