Como viver sem um instante que seja de alienação, aquele em que o mundo lá fora deixa de existir, para que você só e tão somente se encontre com a sua alma, que lhe pede a atenção que o mundo lhe cobra a cada dia? 
 

Não consigo mais me entender comigo mesmo senão pela escolha da “alienada solidão”. Ainda que acompanhado, a falar bobagens, a trocar provocações sem medo de ser mal entendido ou sem qualquer temor de afogar meu superego em alguns copos de chope, sempre com quem não haverá de me julgar por uma frase toscamente elaborada, por uma opinião que possa parecer contraditória, por uma discordância que respingue na impossibilidade de convívio amoroso e, acima, de tudo, franco, aberto, destemido…

É disso que vivem amizades e bem-quereres, e é nisso que se fortalecem as relações verdadeiramente anímicas. Os amigos e os amores não acontecem entre os iguais perfeitamente, mas viçam naqueles que se entendem apesar das idiossincrasias que todos nós carregamos.

Já houve tempos em que alienação era sinônimo de loucura. Eram os tempos de Machados de Assis, com o seu incomparável O Alienista, um tal Simão Bacamarte a buscar o germe da insanidade mental. Hoje a palavra me remete à fuga do cotidiano, o que nem ao menos roça a loucura.

Vivo esses momentos – de alienação – como parte fundamental da minha sanidade. Lendo, vendo um filme, ouvindo música, conversando e dizendo bobagens, ou até falando sério contra o senso comum, numa fúria pouco provável no dia a dia.

Alienar-se pode ser apenas se despir das personas que apresentamos pela simples necessidade de existir socialmente. Sim, porque é esta a imposição severa e inegociável do dia a dia.

Não é a libertação do lado obscuro da sua personalidade, mas a revelação inteira do que se manteve, por dever do ofício humano, protegido da curiosidade alheia – mesmo que parte fundamental do que você carrega. O seu “eu” mais exposto do que sempre, nervo à flor da pele, desdenhando do perfurante olhar coletivo e superficial (que todos nós exercitamos sem pudor).

Ninguém é somente aquilo que se apresenta em tal ou qual grupo de convivência. Será na alienação que você deixará correr frouxas, sem freios, a emoção e as reações que ela lhe provoca. Verdades indizíveis podem – e devem – se expressar nos momentos em que ela o impulsiona a não se guardar para o amanhã.

Como se comportar assim, sem as amarras da civilidade ou de qualquer verniz, se não sozinho ou com aqueles que lhe aceitarão do jeito que você é – sujeito a chuvas e trovoadas?

Não abro mão, se assim posso, de viver a minha própria e intransferível alienação, mesmo tendo como companheiros “monstros” em decifrar a alma humana, uma gente – que até já se foi – capaz de lhe fazer desmanchar-se em desabrido choro ou em manifestação de incontida alegria? Também: sem os que, pelo afeto e pelo conquistado respeito, o aceitarão em uma jornada de pouco alento ou de intensidade inimagináveis?

Os poetas haverão de dizer: a maior (e melhor) alienação estará sempre na paixão, a mais louca de todas as sensações humanas.   

Estarão certos, os vates.

E assim, se você disser: “Eu te amo”, terá vivenciado mais do que um instante de alienação. Esta será a única loucura que não parecerá aos homens motivo para o enclausuramento de um corpo cuja alma ultrapassou a fronteira da razão.  

Se corpo e alma enlouquecem juntos, ganhará a vida um sentido além da autopreservação biológica.

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  • Mônica Oliveira

    Parabéns! Muito bom o seu texto e bastante reflexivo. Capaz de tocar profundamente o ser humano que vive nessa luta contínua pela sobrevivência. Tendo muitas vezes que abrir mão de suas emoções, para não ser tachado de anormal diante das regras impostas pela sociedade da qual faz parte. E o resultado disso,são consultórios psicológicos e psiquiátricos lotados de pessoas que na maioria delas necessita tão somente desabafar.

  • Anthony

    “O mundo é um grande hospital psiquiátrico” quem proferiu essa frase percebeu a insanidade humana em tempo hábil! Aceitar o outro – num exercício de alteridade – com seus traumas,suas idiossincrasias,manias etc, sem julgá-lo é preciso estar muito são. Vivemos personagens diferentes para cada tipo de situação…e quando tentarmos nos despir nos restará dois caminhos: “leave me alone” como fez Greta Garbo, ou pagar o alto preço da autenticidade.

  • Elza

    Toda alienação tem seu preço. Em alguns casos pode ser a felicidade, ainda que “provisória”. Agradeço pelo domingo.

  • Celso Tavares

    Muito bom.
    Sem as carapaças, viver é um exercício cada vez mais complexo.

  • Zanza

    “Vivo esses momentos – de alienação – como parte fundamental da minha sanidade. Lendo, vendo um filme, ouvindo música, conversando e dizendo bobagens, ou até falando sério contra o senso comum, numa fúria pouco provável no dia a dia.” PERFEITO!!! Descreveu minha vivência nos últimos anos. O preço é alto. As perdas são significativas; porém, não ter vontade de ser sempre sociável (numa sociedade tão camuflada) é uma das minhas insanidades preferidas.

  • Olívia de Cássia Correia de Cerqueira

    Introspectivo e bem-escrito, profundo, como todo texto de domingo. Muito bom tê-lo como leitura, Amigo Ricardo.

  • maria auxiliadora araujo

    Dentro de um mundo com tanta incoerencia, com tantos sonhos desfeitos, com tamanha ausencia de paz, adotei , há décadas, a alienação , como uma couraça, para sobreviver .; hoje, na maturidade, ela, sou eu .PARABENS PELO MAGNÌFICO TEXTO !

  • Diógenes Tenório Júnior

    Cadê o livro, amigo Ricardo? Seus textos são tão bons, e merecem tanto uma releitura, que as minhas gavetas já estão ficando sem espaço para as pastas em que eu os coleciono. Escolha ao menos 100 deles (se quiser, eu faço a seleção), e vamos à edição desse que será um verdadeiro best-seller.

  • Solange Aquino Erickson

    Hi Ricardo,
    Eu particularmente acho que com a sua filosofia de vida, se
    você escrevesse um livro, o nosso mundo moderno de hoje não necessitaria de tantos Psicólogos, ou Psiquiatras.
    Sua filosofia é FANTÁSTICA!
    Solange Erickson,
    Baiana, morando no Canadá há quase 30 anos.