– Mãe, solidão dá frio.

Foi assim que o pequerroto Zezé explicou por que toda noite pedia uma vela acesa, para deixar ao lado da cama.

Cego de nascença, Zeraldo (assim mesmo, com o inesperado “z”) de batismo, virou Zezé tão cedo quanto abriu os olhos e nada viu – sem atinar para o que viria a ser. E deu pernas à vida, tornando-se o guia do cãozinho manhoso que o seguia pelo mundo afora. Agia com a destreza de quem trazia a luz nos olhos, mas não guardava resmungo por não tê-la.

A ligeireza do seu pensar logo ganhou fama. Porque dizia das coisas que apenas os que muito enxergam, de gente e de lugar, pareciam ser capazes.

Como sabia que uma mulher era bonita?

– Se for beleza por fora, os homens falam baixinho, no macio, com ela. Se é só bonita por dentro, aí as outras se encarregam de fazer algazarra alegre. 

Com boa prosa foi que ele enredou Lurdinha. Morena desejada pelas curvas que carregava, mas de comportamento reto. Ele havia, disse aos curiosos, tocado nela onde homem nenhum parecia ser capaz de chegar. Mistério de paixão, que só sabe quem sente. 

Zezé não era somente doce, não. Sabia ser remoso, travento, quando lhe cutucavam as costelas na parte que cobre o baticum. Quando o menino de Zezé e Lurdinha gritou que já estava no mundo, ele virou um todo de felicidade. Mas…

– Espia a alegria de Zezé! Nem sabe com quem o menino se parece…

Conhecia de maledicência e de inveja (“Gente invejosa é que nem cascavel: quanto mais velha fica, mais chacoalha pra meter medo”). O troco:

– Quando a senhora chegou junto e pegou o menino, o que ele fez?

– Ora, chorou.

– Quer prova maior de que o menino é meu? 

O que pouca gente entendia era a amizade dele, desde menino, com o único surdo-mudo das redondezas. Nenhuma palavra nunca saíra daquela boca, até porque os seus ouvidos não souberam de uma só, qualquer. Era mouco como uma… Bem, foi assim que virou Ciço Porta. Amigo de se ter saudade.

Sempre que estava precisado de “conversa”, ele vinha à casa de Zezé, caminhando léguas. As duas cadeiras na varandinha já pareciam reservadas ao encontro não marcado. Ficavam calados, horas, mas havia algo de cumplicidade naquele silêncio. Era a sintonia do afeto operando o seu milagre. 

Só a Lurdinha, um dia, o marido segredou: 

– Amizade não carece do falar, só basta aquecer a alma da gente. Amigos de verdade se sabem dois iguais: nem um é menos, nem o outro é mais.

Vá entender Cego Zezé!

Por que Beira-Mar não trouxe o tráfico de drogas para Alagoas
Como se fosse...(um belo texto de Osvaldo Epifanio)
  • luciano melo

    Quer prosa melhor no dia de natal?

  • Gilvan

    Coisas da vida, Ricardo! “Era a sintonia do afeto operando o seu milagre”. É exatamente nesse ponto que Deus se faz presente, se manifesta, opera os milagres do nosso cotidiano. Milagres que passam despercebidos à grande maioria de nós humanos, humanos de pouca fé e muita cegueira, menos aos “cegos Zezés”, nossos irmãos abençoados. Obrigado pelo magnífico e oportuno texto. FELIZ NATAL! BOAS FESTAS! Até amanhã.

  • Celso Tavares

    Bonito!

  • Pablo Hernandez

    Taí uma matéria que merece destaque:existem cerca de 45 milhões de pessoas com deficiência no país.Pasmem, deste total estima-se que mais de 50% sejam sequelas causadas pelos acidentes de trânsito.O trânsito que mata cerca de 40 mil pessoas por ano no Brasil produz, ao mesmo tempo, uma quantidade enorme de vítimas que não entram em qualquer estatística. São pessoas que da noite para o dia se vêem inválidas, mutiladas, psicologicamente afetadas e incapacitadas para o trabalho ou para as tarefas mais simples.
    Até quando o governo federal, e aqui mesmo, no nosso Estado, o prefeito e o governador não vão investir em transporte de massa.A omissão do poder público incentiva a proliferação das vendas de motos e ciclomotores fazendo com que aumente o número de mortos e inválidos.Acidente de moto já virou um problema de saúde pública.
    Comentário de uma enfermeira do HGE:já temos um número insufuciente de leitos, e estes estão sendo ocupados pelos acidentados com motos que aumenta a cada dia.O que fazer?

  • Maria de Fátima Medeiros

    Uma das mais belas prosas que já escreveu. Esta veio com a sensibilidade do Natal. Obrigada pelo presente.

  • André

    ” Amigos de verdade se sabem dois iguais: nem um é menos, nem o outro é mais.” – Se essa frase foi proferida mesmo pela Lurdinha (nem sei se existiu), ela era uma Grande Mestra, Senão, o Mestre é você, Ricardo Mota.

  • J.Monteiro

    Meu caro Ricardo Mota, (no embalo de sua prosa), digo que essa tal de alma que imaginamos, não tem cor, mas, com certeza tem olhos, e não precisa ter boca, porque nós, que somos almas viventes, temos cor, olhos, e boca, mas muitas vezes, e não poucas, nos falta a matéria prima Daquele que nos criou, nos falta o AMOR.

  • Antônio Carlos Barbosa

    Belíssima prosa. O silêncio que fala mais que mil palavras. Valeu