Confesso que eu demorei a “pegar”. Talvez porque, na minha infância e adolescência, a imagem de Dorival Caymmi estava muito associada a de Carmem Miranda (“O que é que a baiana tem?”), de quem eu nunca fui exatamente fã – o que não tem qualquer relação com o fato de ela ser portuguesa, pois, pois?

Mas um gênio já apontava que o bom baiano era jóia rara, bebida fina. E não por acaso, Tom Jobim gravou duas de suas músicas – “Maracangalha” e “Maricotinha” – no que veio a ser o seu último disco, em 1994, “Antônio Brasileiro”. Dois sambas de roda porretas!

Tom via em Caymmi a perfeição harmônica, a simplicidade que não se confundia com pobreza melódica ou poética. O Maestro Soberano sempre deixou claro que tinha pelo mulato de olhar enviesado, sonso, a mesma admiração que dedicou em toda a sua vida a Villa-Lobos. 

Dorival Caymmi alimentou como poucos o mito do baiano vagaroso, sem pressa… Sejamos objetivos: preguiçoso. Uma prova? Em mais de setenta anos de carreira compôs cerca de cem músicas. E eu vos pergunto: quantos compositores no mundo podem relacionar como obra cem clássicos? Sim, porque cada criação de Dorival nasceu com esta sina.

Aliás, as canções de Caymmi tiveram, para mim, “existência” anterior à dele. Mas só alguém igualzinho ao símbolo da baianidade seria capaz de captá-las no ar. Elas já estavam prontas e acabadas. E nenhum ser humano, antes do “preguiçoso”, foi capaz de ouvi-las.

Caymmi foi contemporâneo de uma turma barra pesada da era  da boemia, no Rio de Janeiro. Conviveu, no início dos anos de 1940, ainda pouco conhecido, com os pernambucanos Antônio Maria (jornalista e compositor), Chacrinha (então, baterista) e Fernando Lobo (jornalista e compositor), pai de Edu Lobo. E a turma aprontava.

Numa manhã, ainda cedinho, Fernando Lobo voltou à quitinete onde morava com os seus dois conterrâneos e tratou de garantir o desjejum: surrupiou o litro de leite que estava na soleira de outro apartamento – era assim a entrega em domicílio, à época. Mas a sorte nem sempre chega a tempo. A dona do imóvel abriu a porta e se deparou com o marmanjo, passando-lhe um pito de envergonhar qualquer um que tivesse vergonha. Disse o que queria e perguntou:

– Qual é o seu nome, desaforado?

– Dorival Caymmi.

Era o custo de ser amigo de tais personagens. A vingança baiana veio ao melhor estilo Caymmi: lenta e deliciosa. Escreveu a mais bela canção sobre o Recife “dos rios, cercado de pontes”. Ela mesma: “Dora” (“rainha do frevo e do maracatu”). E os três devem ter se indagado: “Por que não fui eu a fazê-la?”.

Dorival Caymmi exerceu a artesania das canções até o fim da sua existência de 94 anos. (Dizem as más línguas que ele teve “morte súbita”, o que no caso específico demorou seis meses até se concretizar.) Não trazia sofreguidão para viver, muito menos para morrer.

Reza  a lenda que o doce e eterno baiano passou onze anos até concluir uma das suas músicas mais bonitas: “João Valentão”. Travou na estrofe final, mas deixou que os versos chegassem ao seu tempo, dando feições de obra-prima ao que se anunciava mais um clássico. Os versos:

“E assim adormece esse homem

 Que nunca precisa dormir pra sonhar

 Porque não há sonho mais lindo

 Do que sua terra, não há”.

 A pressa, ensinou Cymmi, é inimiga da arte.

 

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  • Noélia Costa Fórum permanenete de combate ás drogas

    Belo Texto,Nana Caymmi tinha um filho com problemas de drogas, e fez uma musica linda,assumiu sem preconceitos.Gostaria de divulgar nosso site,WWW.forumdecombateasdrogas.com.br

  • Valéria Omena

    Belo texto, Ricardo! Nossa vida é tão rápida, cheia de afazeres.Poucos tem a sorte de ser “preguiçoso” e belo!

  • PEDRO LUCAS

    RICADO, DESCULPA USAR ESSE ESPAÇO, MAS É PARA COMUNICAR A MORTE PPREMATURA DO ADVOGADO ISNARD SIQUEIRA, HOMEM SÉRIO, COMPETENTE, RESPEITADO WE ADMIRADO PELOS SEUS AMIGOS.

  • Olívia de Cássia Correia de Cerqueira

    Bela homenagem, belíssimo texto. Tenho no meu pequeno acerto CD e DVD comemorativo aos 90 anos de Caymi, cantam Nana, Dorival, Danilo e o alagoano João Lyra, irmão do Dyda Lira, toca na banda. Uma obra linda. Foi um dos melhores presentes que ganhei nos últimos tempos. Fica com Deus, amigo.

  • AAraujosilva

    O bom baiano Caymmi não tinha
    pressa, mas tem muita poesia:
    “O amor acontece na vida
    Estavas desprevinida
    E por acaso eu também
    E como o acaso é importante querida
    De nossas vidas a vida
    Fez um brinquedo também.”

  • CAPISTRANO

    É meu caro Ricardo!

    Que sorte tem a Bahia em ter alguém que não tem pressa e trazer-lhes beleza!
    Demorou onze anos, mas trouxe a fina sensibilidade de “João Valentão”, música que, se ouvida com atenção, faz os rides chorarem o coração”

    Pior é a gente, cujo “sem pressa” está nos governando, e demorou sete anos para perceber o caos na educação! Fazendo os sérios perceberem a real intenção!
    Burlar licitação!

    Do meu bolso?
    Ah não!!

  • heyder pereira campos

    MESTRE, ÀS VEZES FICO CISMANDO : JÁ PENSOU ESSA TURMA TODA NO CÉU ?

  • Fabio do Osman

    Ricardo bom dia, gostaria de contar com o seu apoio para expor os problemas que relato abaixo:
    As Bases Comunitárias de Segurança que foram recentemente inauguradas, não estão funcionando como prometido, aqui no Osman Loureiro a onda de assaltos só aumenta devido ao aumento da área de atuação, as motos estão paradas desde da inauguração, a viatura só tem direito a 11 litros por dia.
    Com isso a população que é a maior beneficiada do projeto não esta confiante que o projeto de policia comunitária venha a dar certo.
    Ricardo por favor faça um comentário e omita meu nome.

  • A base da transformação é a educação. Povo crítico e lutador transforma, rezador fica mil anos rezando e o sertão continua ao Deus dará…Deus dará

    Só vc Ricardo Mota para nos trazer à lembrança esse baiano retado!

    Domênico De Masi bem que nos chama atenção para o ócio criativo.

  • bjgbalboa

    Nada melhor do que começar a semana lendo sobre o que é belo, em sua mais brilhante concepção musical e poética, própria de quem domina o assunto com maestria. Parabens, independente jornalista e colunista Ricardo Mota. Agora voltando a política, brilhante a Banda Capital Inicial, através de um de seus integrantes Dinho Ouro Preto, quando ofereceu a MÚSICA “QUE PAÍS É ESSE”? ao senador josé sarney, em protesto a eliminação das provas contra seu “bambino” fernando sarney, na operação Boi Barrica. O Estadão está há mais de 780 dias sem noticiar nada sobre o caso. Pobre Brasil! Será que coisas do tipo, também acontecem em Alagoas? Respondam-me os bem informados. Eu nada sei, sei tão somente o que leio em órgãos que têm credibilidade.

  • Celso Tavares

    B….e….l…í….s….s….s….i….m….o!

  • jadielson

    sou filho do radialista,poeta, cantor,declamador,zé do rojão aqui de arapiraca,com seu programa de forró pé de serra a 35 anos na novo nordeste,acompanho sempre os seus trabalhos,e cultura sei que é um dos seus fortes.
    parabens ricardo,que bom agente lê matérias assim na internet.
    olha cara faz qualquer hora dessas uma coluna com os artistas da nossa alagoas.um grande abraço e fica com Deus.

  • Diógenes Tenório Júnior

    Grande esse Caymmi, enamorado de Stella Maris, matriz genética de Nana, Danilo e Dori, poeta dos bons, sábio dos melhores, homem feito flor. Ricardo sabe arejar o funéreo chão em que pisamos.

  • Cláudio Cleudson Barbosa Felisberto

    Caro Ricardo, confesso, comovido, que fiquei bastante feliz com essa bela homenagem a Caymmi… Uma delícia de texto! Viajei em cada música sitada e em suas histórias… Caymmi é uma divindade baiana; poeta do simples, do comum… do nosso Brasil, com cheiro de mormaço, com cheiro de saudade de um Brasil mais lento, quando havia tempo para parar e ouvir essas maravilhas, seja na voz firme do grande mestre baiano ou em muitas outras, igualmente brilhantes, interpretações: “Dora”, registrado por Ney no disco Pescador de Pérolas, é sublime; “João Valentão” fica mais perfeita na voz de Nana, a filha… É difícil não gostar, não se encantar com as maravilhosas músicas desse gênio, que não fez escola, sua simplicidade sofisticada é e continuará sendo única…
    Ricardo, parece até que você sabia e listou algumas das minhas prediletas, só para me agradar… Essa intimidade mostra o quanto o seu texto se faz íntimo; seja falando em política (e outras mazelas), seja falando no tom exato da delicadeza… Obrigado!