Começo de noite, os filhotes espalhados pela cama do casal, e minha mãe cantando em falsete, voz afinada e envolvente. Eis uma das mais doces lembranças da minha infância, que eu revisitei esta semana, quando dona Lucinha completou 80 anos (ontem). Ela carrega no corpo já um tanto encurvado uma espantosa alegria de viver, confesso, até estranha para mim.

Há de se perguntar: o quanto somos como nossos pais? Não é possível mensurar, mas guardo a convicção de que carregamos deles muito mais do que a herança genética. Algo invisível e só perceptível àqueles que nos conhecem mais de perto, identificando jeitos e gestos que replicamos quase que como as letras imaginárias do DNA.

Assim é e será, também, com os nossos filhos. E tomara que possamos nos orgulhar daquilo que semeamos no cotidiano, até mesmo – e principalmente – quando ao menos nos damos conta do feito. Porque esta construção ocorre contínua e ardilosamente. Talvez aconteça de forma mais consistente no “não” do que no “sim”, sem que um signifique falta de amor e o outro a expressão exata do bem-querer.

É traiçoeira esta arte de compor gente, sem que tenhamos em mãos os instrumentos – que nos fogem indiferentes à nossa vontade – tão necessários à impossível escultura.

Todos vivemos, pais e filhos, os nossos tempos de desencontros. Necessários, mas dolorosos para ambas as partes. Foi assim no momento em que “descobrimos” que o mundo nos pertencia; é assim quando parece aos nossos filhos que são eles os “felizes proprietários” do que vai além da linha do horizonte.

Difícil é descobrir o momento em que se dá o reencontro. Como filhos amadurecidos, já imaginamos, com alguma chance de acerto, o que somos. E chega a hora de sabermos, também, o que foram e sempre serão os pais nas nossas vidas. Quão maravilhoso é quando percebemos que as diferenças e semelhanças são, em partes iguais, responsáveis pelo amor que restou íntegro – mesmo que arranhado, envelhecido e às vezes até silencioso, de poucos dizeres.

Oscar Wilde construiu um dos personagens mais cínicos da Literatura Universal: Lord Henry, do antológico “O retrato de Dorian Gray”. O que nos diz o indigitado?

– Poucos de nós têm a chance de perdoar seus próprios pais.

Vale a pena torcer para que nossos filhos sejam contemplados – e agradecer pela sorte, se ela bateu à nossa porta.

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  • BENEDITO RAMOS

    Lindo texto, Ricardo. Profundo e terno.
    um abraço.

  • Mônica RB

    Belíssimo texto! Mais um presente dominical.

  • HEYDER PEREIRA CAMPOS

    AH, MESTRE. A SORTE BATEU, BATEU FORTE EM MINHA PORTA! MINHA VELHA AVÓ (DEUS A TENHA), ME EDUCOU NOS MOLDES DE 1880. O HOMEM, DIZIA ELA, TEM DE FAZER E SABER DE TUDO. NEM SEI SE PASSEI PARA MEUS FILHOS TUDO O QUE APRENDI DELA. PELO MENOS TENTEI. ESTOU, ATÉ HOJE, ESPERANDO O REENCONTRO. AQUELE . . .

  • Antônio Carlos

    Prezado Ricardo. Que belo texto. Acredito que somos constituídos pelos nossos pais e avós. Repetimos até o que censurávamos neles. Outro dia, fomos a uma livraria eu e meu filho,vendo um livro (biográfico do José Sarnei) exposto na bancada, gritei imediatamente para o meu filho e todos presentes na livraria ouviram, apontando para o livro “filho, este livro é uma mentira, pois este homem é um dos maiores ladrões da República”.
    Estava naquela momento repentido o velho Tonho da Gaba como se vivo estivesse, aliás, estava vivo em mim. Como também vivo está, quando vou com com meu filho, meu sobrinho e amigos, assistir aos jogos do ASA GIGANTE, a repetição das emoções e o prazer do retorno ao passado é imensa, gerando uma repetição futura para o meu filho e meu sobrinho, com os seus futuros filhos. Como dizia o Filósofo, é o eterno retorno ao que nos constitue, às lembranças dos primeiros tempos.
    Parabéns velho Jornalista, pelo lado humano, que você herdou da formação do seu Luís Mota, Dona Lucinha, e dos seus avós. Grande abraço.

  • Alex Ferro

    Infelizmente não tive minha mãe como referência pois a perdi muito cedo, e felizmente não tive convivência com meu pai que é sinônimo da irresponsabilidade, sempre busquei ser o oposto dele, foi melhor ter como referência várias pessoas a qual convivi e consegui filtrar o que de considerava de melhor, hoje tento passar para os meus filhos tudo que foi absorvido, auto-estima, honestidade e caráter.

  • Joaquim Alves

    Amigo Ricardo: muito boa essa sua crônica sobre os 80 anos de sua mãe. Afinal,mãe é o único amor verdadeiro, visceral, permanente que o homem tem. Os outros, chegam, vivenciam e passam. O de mãe, nem se questiona. Se agradece, até, quanto mais tempo ele pode ser saboreado. A minha mãe tem 85 anos e é minha referência, um ser especial e abençoado, como todas as mães. Só que a sua (para vc) e a minha (para mim), são mais especiais ainda.
    Abração Conde Richard.

    PS: e o novo CD, quando sai? Avise.

  • Etevaldo Alves Amorim

    Belo texto,como sempre. Seu leitor assíduo, especialmente aos domingos.

  • Jerônimo Veras

    Prezado Ricardo, apesar de ser indiscutível que a “composição” da personalidade envolva aspectos biológicos e ambientais, estes primariamente representados pelas figuras paternas, parece que a influência familiar no comportamento do filho é menor do que imaginávamos. Pesquisas têm revelado que o comportamento social – “a grande família” – tem intensa repercussão na maneira como pensamos, sentimos e agimos. A explicação dos pesquisadoses para que países considerados “felizes” – Canadá, EUA, Finlândia, Suiça – tenham altos índices de suicídio se deve ao fato das pessoas julgarem seu bem-estar em comparação com os outros ao seu redor. Ou seja, ser infeliz num ambiente feliz torna a infelicidade mais dolorosa. Particularmente já tinha percebido tal fenômeno ao perceber a melhora do ânimo de deficientes físicos após um período de tratamento e convivência com outros pacientes na Adefal. Cresce então a responsabilidade de considerarmos não apenas as necessidades dos nossos, mas também as dos outros, porque provavelmente também não há como ser feliz num contexto de sofrimento e infelicidade. Quanto ao perdão – si mesmo, pais, irmãos – a religião e a psicologia, embora com métodos e direções distintas, definem como fundamental para a saúde espiritual e mental, respectivamente. Incorporá-lo no cotidiano é, sem dúvida, um dos principais caminhos, embora que difícil, para o bem-estar, seja ele qual for.

  • Profº Marcos Vinicius

    Ricardo, temos orgulho de fazer parte também desta maravilhosa família por adoção pela sua mãe que adotou minha esposa, a Profª Jô de pintura. Agradeço o carinho que vocês tem por nós.E sua filha tem uma ótima voz, ela vai fazer parte do próximo CD ?

  • Roseira

    Ricardo, transmita os meus parabéns à Dona Lucinha, personagem de minha vida muito querida, apesar da distância imposta por mim, involuntariamente.
    Beijos, Roseira

  • jordan costa

    Perdi meus pais, há pouco tempo, como você bem sabe, e ontem ao abraçar a D. Lucinha, senti uma saudade imensa dos meus velhos.Como é bom poder abraçar as pessoas que amamos! – acho que nada substitui um abraço sincero, mesmo em alguns momentos onde julgávamos ser as palavras mandatórias.
    “Quão maravilhoso é quando percebemos que as diferenças e semelhanças são, em partes iguais, responsáveis pelo amor que restou íntegro – mesmo que arranhado, envelhecido e às vezes até silencioso, de poucos dizeres.” – Ricardo Mota, O Poeta

    Um grande abraço.

  • Josafá Soares

    Querido Ricardo, lindo texto.Um luxuoso presente dominical.

  • GISELDA

    O QUE ESCREVER APÓS UMA LEITURA TÃO GRATIFICANTE? UM BEIJO FRATERNO NA D. LUCINHA. Giselda

  • Mara Flôres

    Parabéns, belo texto para ler neste domingo sem sol. Bela coincidência, porque eu acordei hoje lembrando especialmente de minha mãe, a única viva entre meus pais e avós. Achei até que era dia das mães, liguei e enquanto o telefone chamava, lembrei que é só no próximo domingo. Ela fez 80 anos em 2010, mas está completamente lúcida e com a saúde razoável fora os probleminhas da idade. Faz poucos dias, eu conversava com uma amiga de infância sobre o quanto minha mãe foi importante na minha formação e evolução, uma mulher a frente do seu tempo, começou como professora municipal aos 16 anos, criou e educou 7 filhos trabalhando em muitas épocas em 3 atividades diferentes, com isso, faltou presença física, mas nunca a atenção e o carinho para todos os filhos.
    Quem me dera ter esse significativo papel na formação e evolução meus três filhos.

  • Michele luz

    Ricardo,

    Como é bom ser presenteada com um texto tão cheio de amor e carinho. Minha mãe é uma mulher maravilhosa e que graças a Deus meus filhos tem o privilegio de ter por perto esse amor.
    Abraço!

    Michele Luz.

  • antonio carlos gouveia

    Prezado Ricardo Mota.
    Como sempre, seus pensamentos quando escritos, trazem a reflexão de seus leitores e a certeza da grande pessoa que és. Este texto reflete de maneira lucida a relação (mesmo que excelente) entre nós e nossos pais e a necessidade de aprimorarmos para com nossos filhos.
    Parabéns pela sua maneira brilhante de ser!!!!!

  • AAraujosilva

    Prz. Ricardo, meu caro jovem,
    essa arte de compor gente é de
    fato traiçoeira e cruel; porém
    formidável… O tradicional
    tal pai, tal filho é um alento
    muito bom ànossa marca terrena;
    até mesmo se não formos, por
    eles, perdoados.

  • JEFF SILVA

    Belo texto camarada.
    Tive também a sorte grande, embora, e por vezes, no lugar errado, ou no lugar certo mais em tempo errado. Como a maioria dos de minha geração, herdamos o gosto pela honestidade, pela retidão de caráter e pelo compromisso com a palavra. Como diz minha “velha” mãe:De que vale um homem sem palavra? apenas o resultado do ele digere e nada mais. Espero que meus filhos tenham um pouco de mim como reflexo. Pois em uma sociedade onde a ausência dos valores é o que impera, espero deixar uma luz a ser seguida. Nossos pais, mesmo quando erram, não há o que se perdoar, pois são “erros” tentando nos lapidar, pois todo pai ou mãe, acreditar ter um diamante em sua vida. Nós, os filhos, somos as pedras mais preciosas da terra, e quando nos tornamos pais, passamos também a ser lapidadores de gente, de caráter, de sonhos. Abraços.

  • therezinha g albuquerque

    Ricardo
    Tomei a liberdade de enviar seu lindo texto ao meu primo Murillo Vaz (escritor e jornalista como você) e veja o que ele enviou:

    Re: lucia mota
    De:Murillo Vaz
    :Re: lucia mota Data:01/05/2011 21:01
    Therezinha,

    muito obrigado pelo envio de “Como nossos pais?”. Peço-lhe o favor de congratular o Ricardo pelo texto.

    Aquele abraço,

    Murillo

  • Luiz Fidelis

    Texto belissimo, caro Ricardo me fez lembrar da minha falecida mãe que tanto que tanto contribuiu para eu ser o que sou hoje.
    Fiquei com Deus

  • Cicero Lima

    Parabens Ricardo. Suas palavras são, sempre, objetivas. Confesso que, naquela noite senti uma mistura de alegria e saudade. E você sabe porque!Abraços-Lima

  • edna maria

    infelismente não posso dizer que este dia me agrada,é muito triste,pois eu sou amigo ricardo mais uma daquelas crianças jogadas no lixo,envonta em um pedaço de pano.
    sou paulista e aqui em ALAGOAS encontrei amor e carinho de muita gente,principalmente no meu trabalho.
    dormi muito nas ruas de São Paulo.
    tenho dois lindos filhos, e dois lindos netos,mesmo não tendo educação e amor de familia consegui transmitir a eles o amor a DEUS e lutei pela educação dos mesmos, graças ao SENHOR
    criei dois homens,por isto sou feliz.
    mas a magoa é grande por saber de onde vim e quem sou eu.abraços

  • Luiz Cláudio

    Parabens à D. Lucinha, que aturava a turma da Buarque de Macedo quando íamos jogar botão com o seu irmão Alexandre.

  • Ubaldo Rodrigues

    “São meus filhos que tomam conta de mim…”

  • João Carlos Uchoa

    Grande, Bravo! Genial o seu comentário deste domingo, Ricardo.É o que podemos vislumbrar. Parabéns.

  • José Adilton Alves Santos

    Donas Lucinhas que Deus nos deu e as tenha.
    A mãe canta e conta em belíssimo e profundo falsete a beleza da vida vista na pureza da crença que vê o céu existente pelo amor materno incondicional e visceral a cria sem idade, mas apenas o feto a ser fortalecido contra o infortúnio da vida pagã.
    Mães Pais, por reticência…, que com os olhos da fé, enxerga a gloria de persuadir o bem e o bom.
    A coruja mãe, a barraqueira, a lerda, a falante, a elegante, a experiente, a encantadora, a simples, a fera, a cuidadosa, a sábia…, a anjo de, ou sem candura, a linguagem dos deuses.
    A todas elas, mães, as quais, iguais a minha e as suas, minha eterna gratidão e ao ser que as criou. Gratidão pequena para não ser hipócrita pelo excesso, e enorme e ilimitada pela falta de sinônimo mais grandioso.
    Que sempre sobreviva o histerismo e o incondicional amor de mãe. E que não sofram os filhos, para que por amor não padeçam as mães. E que o canto em falsete, com voz afinada e envolvente, ou não, e os seus bons ensinamentos e ternura permaneçam além dos nossos ouvidos e continuem em nossas consciências e micro vidas, e sejam transferidas ao infinito.