Quem seria aquele ‘galeguinho’ que transformava tão nobre instrumento num brinquedo? Sim, a pergunta que me veio foi esta ao ver, pela primeira vez, Raphael Rabello “desmanchando” o violão – como se fosse o seu brinquedo. Dali para frente foi um encantamento só. Sensação igual eu havia tido apenas quando assisti ao já velho Andrés Segovia, aquele homenzarrão, deslizar suas mãos no braço do pinho com a suavidade de uma bailarina em cena – à meia-luz. Raphael era um dos grandes de todos os tempos, logo me convenci.

Foi numa madrugada, de sono tardio, que eu inaugurei minha condição de fã daquele jovem de barba rala e olhar profundo, ao vê-lo acompanhar o mestre Radamés Gnattali na execução das obras de Garoto, um dos favoritos do maestro gaúcho. Estraçalhou – do alto dos seus vinte e pouquíssimos anos. A perplexidade de Hermínio Bello de Carvalho, um nome a quem a MPB deve tanto (descobriu, entre outros, Clementina de Jesus), era impossível de ser contida. Indagou a Radamés:

-Quem é o maior violonista do Brasil: Baden Powell ou Raphael Rabello?

Isso era lá pergunta que se fizesse?

O maestro, elegante, foi delicadamente taxativo:

-Se eu fosse o Baden Powell gostaria de conhecer o Raphael.

Eu não sei como essa história terminou, mas o fim do jovem e talentoso violonista brasileiro foi trágico e precipitado. Morreu aos 32 anos de idade, deixando-nos uma obra inesquecível. Aquele garotinho, que começara a vida profissional aos 14 anos, imberbe ainda, fez maravilhas ao violão, como se este fosse extensão própria do seu corpo. Autodidata, chegou a lecionar na Universidade de Música de Los Angeles, em 1994, na condição de professor visitante.

Nascido no Rio de Janeiro, em 1962, nos deixou – saudosos – em 1995. Ficou como legado a participação em mais de 400 gravações: todos o queriam a dedilhar as cordas do coração – se tornava, então, a Orquestra de Cordas Raphael Rabello, costumo brincar. Os seus discos solos são obras-primas para sempre. Tenho sua discografia quase que completa (o meu preferido é “Todos os Tons”) – faltam-me aqueles que não viraram CDs, ou não foram editados no Brasil.

A triste sina de Raphael Rabello teve início em 1985. Ele se dirigia ao teatro, para mais uma apresentação, quando o táxi que o levava se envolveu num grave acidente. Teve múltiplas fraturas num dos braços. No hospital onde foi atendido recebeu uma transfusão de sangue – junto, o vírus HIV. Quando soube da fatalidade, Raphael Rabello não deu mais sossego ao seu corpo – sua alma perdera-o, já, totalmente. Rumou para a morte como um condenado que se rebela contra a injusta sentença.

Tempos depois, olhando os seus discos, descobri que não havia nos encartes uma só fotografia em que aquele moço louro e de pouco falar (para quê?) aparecesse sorrindo. Trazia, pareceu-me, uma tristeza atávica, como se soubesse que o destino havia de lhe roubar a existência “muito antes do combinado” (Rolando Boldrin). “Mozart do choro” foi uma das alcunhas que justamente recebeu – pela genialidade e pela morte em pleno voo da juventude.

Se alguém esperava que eu terminasse estas linhas dizendo que Raphael Rabello está lá no céu, arpejando com os anjos o seu instrumento, se enganou. Até porque, para mim, o céu é continuar ouvindo por aqui o homem que nasceu violão.    

 

 

Renan briga com Romero Jucá por causa da liberação de dinheiro para Alagoas
Sangue e pudins
  • Mônica

    Bravo! Bravíssimo!!! Sou uma fã incondicional do trabalho desse talentoso artista. Ouví-lo tocar é um privilegio. Guardo como tesouros os discos que consegui adquirir na nossa saudosa “CD CLUB”. Parabéns, Ricardo.

  • Paracelso

    Li, nesses dias, comentários de Machado de Assis sobre as crônicas. A desse domingo encaixa-se perfeitamente naquilo que ele acreditava. Belíssima! O fecho foi ótimo. O Rafael deve ser mais divulgado.

  • Yuri Brandão

    Amigo Mota: quem é aquele jornalista (também músico) que transforma uma singela história envolvendo um “brinquedo” em uma bela crônica jornalística, enriquecendo nossos domingos? E vivam os violões e os violonistas (inclusive os das letras)! Por ora é isso. Abraço do YB

  • Itajaci

    Ricardo, por que os gênios, do bem, morrem?

    Tenho um CD cujo título acredito fazer parte da sua coleção “Mestre Capiba por Raphael Rabello e convidados” é simplesmente um arraso. Puro deleite escutar Recife cidade lendária, Cais do Porto, Valsa verde, Serenata suburbana, A mesma rosa amarela…ai ai que saudade…

  • alexmar

    Demais! Raphael Rabelo, um gênio do violão.Tenho o cd dele com o Ney e outro com o Armandinho que não dá para apertar o stop.

  • Elizabete Patriota

    Sei que a morte é a única e inexorável certeza que todos temos, mas teimo em não aceitar a ideia de que esse triste fato que nos atormenta quando nele pensamos ou quando com ele nos deparamos, seja vontade de Deus. Os que creem diz ser a morte sábia. Qual será, Ricardo a sabedoria desse traiçoeiro e inevitável fato do qual nenhum de nós pode fugir?

  • alexmar

    Ricardo,cite, eu sei que é uma tarefa difícil,os dez discos( de música brasileira) que você levaria para qualquer lugar?

  • Gostaria…

    Gostaria que o Cara conhecesse o tocar de Rafhael, assim o Brasil não teria o DESgoverno do nosso querido presidente LULA, que já PAGOU o absurdo de R$ 794,9 Bilhões de Juros (de jan/1995 a 22/03/2010,) para uma minoria de cerca de 10/12.000 famílias, detentoras da Dívida Pública. E só GASTOU para uma maioria de 190.000.000 de brasileiros, em Segurança (Ministério da Justiça) apenas R$ 39,4 Bilhões, no Combate a Fome tão somente R$ 107 Bilhões, na Educação, pasmém R$ 173,3 Bilhões e n/Saúde “apenasmente” R$ 258 Bilhões. Daí resultam + de 350/400.000 mortes por VIOLÊNCIA, + de 45.000.000 de brasileiros passando FOME (afirma a mídia q/são dados atualizados pelo IBGE), c/centenas de estudantes POBRES sem acesso ao ensino superior gratuito e o caos na saúde que contempla a incompetência do DESgoverno LULA com 18 mortes em 2 meses de crianças no Maranhão, por falta de leitos em unidades de terapia intensiva neonatal – U.T.I. neonatal. DESgoverno do Brasil é PT + do Maranhão PMDB, esperar o que? Claro, em um Brasil que só gasta R$ 173,3 Bilhões em Educação e paga R$ 794,9 Bilhões de Juros, uma popularidade de 76% ainda é pouco. Nos cabe a reflexão de Rui: De tanto ver triunfar as NULIDADES, de tanto ver prosperar a DESONRA, de tanto ver crescer as INJUSTIÇAS, de tanto ver agigantar-se os poderes nas mãos dos MAUS, o homem chega a desanimar-se da VIRTUDE, a rir-se da HONRA, a ter vergonha de ser HONESTO. P/Arabutan.