-Com quem você está conversando, Cartola?

-Com as rosas.

-Mas as rosas não falam!

Esse pequeno diálogo teria sido o mote para que Angenor de Oliveira compusesse um dos maiores clássicos da Música Popular Brasileira, conta, com muita graça, dona Zica, personagem indissociável do grande mestre do cancioneiro popular – de obra rara e delicada. Depois da conversa, ele foi em busca do seu violão e pôs-se a urdir versos elegantes e refinados, o que, aos desavisados, só seria possível à erudição, por exemplo, de Vinícius de Moraes.

O fato é que não se aprende a língua das rosas, e a poucos é dado sabê-la, sendo Cartola um dos privilegiados. Uma música, “As rosas não falam”, tão pungente que Paulinho da Viola passou muitos anos, depois de ouvi-la pela primeira vez, sem poder cantá-la em público – ao fazê-lo, sozinho, ia sempre às lágrimas.

Quando conheci o fundador da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira (em 1928), aí pela década de 1970, lembro-me de ter ouvido seu Luiz Mota se queixar:

-Também só tem essa música!

Era mais uma aplaudida apresentação do sucesso – naquela época, possível – do sambista negro e de nariz deformado. Estava humanamente errado, meu pai, e, por algum tempo, eu permaneci no erro. A descoberta da extensa e sofisticada obra do Mestre Cartola veio ao longo dos anos e continua até hoje.

Mas é bom desfazermos alguns mitos: Cartola não era analfabeto, tampouco ficou conhecido somente quando o tempo já lhe deixara inexoráveis marcas. Fez o então curso primário numa escola do Catete, onde nascera em 1908. Só aos onze anos de idade, por causa das dificuldades financeiras da família, mudou-se para o morro da Mangueira.

Na década de 1930, já era um nome reverenciado no Rio de Janeiro. Chegou a fazer um programa de rádio com outro bamba, Heitor dos Prazeres, antes que a bebida o levasse a um longo mergulho no silêncio. Humilde e sábio, Cartola conhecia muito bem as suas fraquezas:

-Meus vícios sempre foram beber, fumar, tocar violão e correr atrás de mulher. Mas nunca gostei de mulher muito moça. Todas as minhas mulheres eram mais velhas do que eu ou da minha idade. Sempre gostei de mulher mais velha por dois motivos: pra evitar filho ou porque tem mais juízo. Pelo menos mais do que eu.

Depois de desaparecer, no final dos anos de 1940, e ser dado como morto, retornou ao convívio dos seus incontáveis admiradores pelas mãos do jornalista e escritor Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, em 1957. O autor do “Samba do crioulo doido” o reconheceu num prédio em Ipanema, onde lavava carros. O Brasil ganhou, de novo, o seu maravilhoso artista. Tanto sofrimento, provocado pelo ostracismo e, principalmente, pela “malvada”, não lhe tirou o bom humor.

Valente?

-Deus me livre. Enquanto eu for covarde minha mãe tem filho.

Imortal?

-É claro que eu sou imortal. Não tenho onde cair morto.

Os tempos de redescoberta nem sempre foram de rosas. Só viria a gravar seu primeiro disco graças ao bravo Marcus Pereira, em 1974. Ganhou todos os prêmios, mas pouco dinheiro. Menos sorte havia tido, ainda, na Primeira Bienal do Samba, em 1968, quando a sua belíssima “Tive, sim” ficou em quinto lugar, depois de uma impiedosa vaia da plateia (na Era dos Festivais, tudo que não fosse engajado era alvo da fúria da moçada).

Defendendo o samba, ninguém menos do que o doce Ciro Monteiro, de síncope inimitável, divisão perfeita. (E que não perdia, por nada, a feijoada de Dona Zica, aos sábados. O “Formigão”, quase sempre, errava na dose, ia além do limite que o corpo lhe impunha. Numa das tantas vezes, passou mal, e a anfitriã, rapidamente, lhe preparou um chá de boldo. Suando muito, lívido, o bom Ciro Monteiro, ao ser apresentado ao preparado, apelou: “Não sai nem uma bolachinha pra acompanhar?”).

Às vésperas de morrer, em 1980, o cidadão Angenor de Oliveira, ex-pintor de parede, ex-pedreiro ( seu definitivo nome se deve ao chapéu-coco que usava para impedir que o cimento lhe caísse sobre a cabeça) ganhou, enfim, uma crônica de Carlos Drummond de Andrade – reconhecendo a sua condição de grande entre os grande poetas do Brasil. Poucos receberam essa honraria do mineiro de Itabira.

Hoje, “As rosas não falam” já não é a minha preferida entre as muitas e belas músicas do Mestre. Um dia, já foi “O mundo é um moinho”, em outro, “Acontece”, sucedida por “Sala de recepção”, e, por esses tempos, me emociono sempre que ouço “Cordas de Aço”. Não sei onde essa história vai parar, mas Cartola está cada vez melhor.

 

Almeida sobre candidatura: "Tenho conversado muito com Deus"
Quando é preciso ir contra a corrente
  • Anônimo

    No mesmo dia, a preferida varia. Suas músicas tocam fundo e assim …

  • Augusto Trancoso

    Cartola deve está se revirando no tumulo com a invenção do pagode,todo mundo no seu quadrado, etc etc tc…Mas como vivemos numa “Musocracia” há espaço para todos a mídia veicula o que dá dnheiro que é a mola mestra do mundo.Então que tal comer uma “Rapadura com mel” com benito de paula no show do forró dos plays.Eu hein

  • marcelo firmino

    Salve, Pena.
    Talvez sejamos de uma outra tribo.Há poucos dias fui visto como saudosista por ter dito que gostava de Cartola. Independente do coração e do ninho, Cartola está eternizado no moinho da vida.
    O resto fica por conta da mangueira…

    Marcelo Firmino

  • Ruth Vasconcelos

    Ricardo,

    É realmente um privilégio vir ao mundo e, num espaço de tempo tão curto (como o da existência), aprender a falar a “lingua das rosas”. Alguns passam pela vida sem sequer aprender a língua dos homens e mulheres, imagine das “flores”. Por isso os poetas são sujeitos tão especiais; e os mais humildes parecem gigantes, como por exemplo, Cartola e Patativa do Assaré (assisti ao filme sobre sua vida e fiquei muito emocionada em saber existir gente tão simples, portadora de tanta sabedoria). A cumplicidade de Cartola com o seu “pinho” emociona, particularmente, aos que fazem deste instrumento uma possibilidade de viver emoções existenciais através da música. Os tempos realmente mudaram… penso isso com uma certa nostalgia … Será que os viventes deste mundo podem desejar, como o fez Cartola, na madrugada, voltar para casa cantando – “Eu, você e a companheira … na madrugada iremos pra casa cantando…” , ou estamos condenados a voltar para casa assustados com a insegurança e atormentados pelo medo de não chegar? Perdoe a falta de romantismo. Desejo dias melhores… Ruth Vasconcelos.

  • Felipe

    Cartola fiho do Brasil,mestre de tantas composicões belas como, peito vazio,minha,ensaboa mulata sei chorar, dentre outras e ele era pó de arroz fanatico, um grande torcedor do nosso FLUMINENSE, um super bom gosto viva CARTOLA!

  • Domingos Arabutan Correia da Rocha

    Gostaria RM, de ouvir Angenor de Oliveira, no maior clássico da Música Popular Brasileira, mas graça a Dona CASAL, sem ser Dona Zica, estamos na Ponta Verde sem água suficiente as necessidades básicas: asseio, cosinha etc, há + de 22 dias, e para ouvir “AS ROSAS NÃO FALAM” sem água até para tomar banho, em pleno século XXI, é dose pra leão, não achas?