A cada verão era sempre o mesmo cenário: praia durante todo o dia e até à noite, jogando bola às margens do riacho Salgadinho. Terminada a temporada de férias, eu estava tostado, literalmente. Carregava os medos e as incertezas de toda criança em qualquer tempo ou lugar. Mas havia pela frente um mundo de possibilidades não mais disponível para a infância e a adolescência dos novos tempos.

E não apenas do sol brilhando e fazendo a areia branca queimar os meus pés trago as boas lembranças que me socorrem quando tudo parece ter sido sempre um fardo a carregar. É o menino que ajuda o homem na caminhada, sabe-se lá para onde. Os dias de chuva, também os guardo com uma confortável saudade.

Na primeira infância, quando o céu cinzento anunciava – e cumpria – um temporal bem próprio da região, ficávamos em casa, eu e meus irmãos,  brincando sobre o colchão de casal, mais espaçoso e propício ao nosso divertimento. É a primeira imagem de "ninho" que carrego comigo. Às vezes, deitados todos, ouvíamos o canto em falsete da minha mãe, que, afinada, se apresentava para a sua pequena platéia, nos ensinando que a música alimenta a alma quando nela carrega a beleza.

Um tanto mais taludo, encontrava no quintal de casa a fonte de prazer: uma bica que se formava sobre o telhado de um velho  banheiro, onde nos encharcávamos com a alegria de poder fazer o que nos era proibido – tomar um banho de chuva. E só parávamos a farra ao soar a voz impositiva e incontestada do meu pai. Poderíamos gripar, dizia ele – e não sem razão.

Na rua, jogando futebol, as poças que se formavam nos exigiam mais destreza e esperteza – podiam ser aliadas ou adversárias dos meninos que corriam atrás da bola. Parecia que os filetes de água nos surravam quanto mais corríamos. E mais corríamos para que o corpo aquecido nos protegesse do frio.
 
A chuva fez morada, também, nas minhas lembranças de jovem, quando da descoberta da paixão, ou do "amor com hormônios". Era um dia qualquer da semana e saímos da escola, eu e minha namorada, num fim de tarde invernosa. Recém-saídos da adolescência, caminhávamos de mãos dadas pelas ruas quando o céu desabou sobre nós. Eram pingos enormes a nos cobrir, deixando-nos rapidamente ensopados. Não apressamos os passos e seguimos o nosso trajeto de sempre, como se nada estivesse a acontecer.Íamos vivendo a liberdade conquistada ali, naquele instante.

Não recordo mais os seus traços, nem mesmo os meus. A cena, no entanto, é impossível apagar da memória (nem quero). Sem que um precisasse sinalizar ao outro que alguma coisa, simultaneamente, então, acontecia dentro de nós, nos abraçamos sôfregos e desesperadamente. As linhas dos nossos corpos estavam à mostra, e nos tocamos quase a nos empurrar, como se imantados fôssemos. Era esta, talvez, a verdadeira força da gravidade de que nos falara o professor de Física.

Não olhamos em volta, nem tivemos qualquer receio da censura dos que por acaso nos vissem daquele jeito – colados um ao outro, numa paixão sem freios. O resto do mundo? Não importava… já havia a chuva, já havia nós dois.

 

 

 

 

 

 

 

E agora, prefeito?
Voto para vereador- compromisso ou desdém com a sua cidade
  • VIVO POR VIVER!

    RICARDO,QUE BOM VOCÊ TER TANTAS COISAS LINDAS PARA LEMBRAR DA SUA ADOLECÊNCIA!EU…NÃO TENHO NADA PRA LEMBRAR,POIS CASEI-ME AOS 17 ANOS E COM UM MARIDO ALCOOLÁTRA,NÃO SEI O QUE É VIDA,ESSE MÉS FAÇO 25 ANOS DE CASADA E DE INFELIZ…VIVO POR VIVER!

  • fernando andrade

    …e, dentro de voces e em seus derredores, cabia todo amor do mundo seguramente repassando por osmose ou por contiguidade ou seja o que fosse.Você consegue nos remeter a todas essas emoções tão intensamente vividas.Sensacional

  • JOBSON

    Ricardo,quarde esta matéria em seu arquivo. Pois, sem dúvida, muitos escritores famosos gostariam de tê-la como um dos mais belos capítulos de seu livro.

  • Rosa

    Ternas palavras,Ricardo! Iniciar o dia e apreciar uma narrativa com passagens tão intensas e inesquecíveis vivenciadas pelo autor, faz-nos mais leves e mais dispostos a falar sobre coisas boas…coisas que enobrecem a alma!!!

  • maria do carmo

    bonito e real, como de tantos da sua gaeração.me vejo nele, epoca de muita imcencia e sonho.é,realmente o mais belo periodo da vida, apezar da sabedoria da idade madura me conquistar.mas as lembranças me voltam sempre e colorem o presente.

  • nina 1

    Delicioso tomar banho de chuva,sem medos,com liberdade,teimosia e muita alegria,bons tempos.MUito bacana este texto,saudades da infancia.

  • Maria Ana da silva

    Ricardo,finalmente alguém que recorda feliz sua infancia. Obrigado por me fazer sonhar e re-pensar quando também tomei banho na chuva.Um abraço e continue a nos fazer sonhar,apesar de viver tao longe do nosso brasil, de Alagoas, é bacana demais ler coisas belas como essa.

  • Ruth Vasconcelos

    Não temos a chance de voltar o tempo, mas a possibilidade de revivê-lo,assim,elaborando um texto.Guardamos cada tempo da existência em nossa memória;talvez este seja o único espaço inviolável do humano.Não temos o direito de esquecer os bons tempos porque hoje existem chuvas ácidas.

  • maria helena

    Ricardo,senti-me feliz lendo seu suave, puro e apaixonado artigo ao tempo que lembrava o esperto e inteligente. garoto do grupo escolar Fernandes Lima.

  • Lúcia Dâmaso

    Andando pelas esquinas da internet, encontrei es-se texto, que fez reviver a minha inesquecível in-fância e adolescência, nos arredores da praça Pi- rulito,Faculdade e Deodoro,onde banhada pela chu- va,eu saboreava cada fruto delicioso caído dos imponentes oitizeiros.Que saudade! Parabéns!

  • Sandra Correia

    Caro Ricardo que maravilha de texto sobre a infância , sobre o que há de mais puro e livre dentro de nós. Obrigada por nos presentear com este adoravel texto.

  • cavalcanti filho

    Grande jornalista, poeta, pai, amigo. sou teu fã cara!D’us contigo.

  • Salete

    E o Salgadinho? Dava até pra tomar banho e pescar piaba. rsssss. Um dia meu irmão caiu lá e quase morreu afogado, mas n teve infecção pela qualidade da água. Beijos. Saudade. Um grande beijo na Marta, minha colega do Saccramento.

  • Romildo

    Bela história Ricardo.Entretanto os jovens de hoje não podem mais viver,pois o Salgadinho está poluido,a grande faixa de terra das praias em que jogavamos quase não mais existe,sem contar que andar nas ruas,hoje,é risco de vida, pois há ladrões em todo lado. CONTINUA….

  • Romildo

    Ficamos no Aguardo do Prefeito e do Governador de nosso Estado, juntos fazerem alguma coisa pela faixa de terra da orla de nossa Capital, pois está se acabando, não dando condições daquele joguinho de bola, bem como,acabar com a poluição do Salgadinho e de nossas Praias.

  • José M Filho

    Tenho da mesma forma boas recordações da epoca de criança e adolecência. Como os tempos mudaram só resta hoje recordar graças a suas lembranças a todos aqueles inesqueciveis momentos.