Só quando as luzes da sala de projeção se acenderam é que eu tive a noção exata do que havia acontecido ali. Eu acabara de assistir a "Invasões Bárbaras", filme do canadense Denys Arcand, e me encontrava em estado de transe. Mas isso não foi o suficiente para que deixasse de perceber o que se passara. No cinema, só eu de "coroa" – todos os demais espectadores eram muito jovens, atraídos, certamente, pelo enganoso título do filme. Durante a sessão apenas eu gargalhava (chorei, também, mas discretamente), e, assim, ouvia soar as minhas solitárias risadas em meio ao silêncio do restante da platéia. E não era para menos. O filmaço tratava da morte tanto quanto da vida. E para a meninada, obviamente, a temática não era interessante.

Nada de crítica à juventude. Tudo havia sido como deveria, em qualquer tempo e/ou lugar. Afinal, o "maior de todos" eu só havia descoberto de fato quando já era um jovem adulto. Assistira muito aos filmes de Charles Chaplin na infância, mas com os olhos de menino. Depois, foi diferente. Intrigou-me para sempre a capacidade do pequeno vagabundo para fazer rir e chorar na mesma intensidade. 

"Luzes da Cidade" continua sendo o meu preferido. O do próprio Chaplin, "Monsieur Verdoux" – e ele sabia muito mais da matéria do que eu, felizmente. Não me lembro quantas vezes vi cada uma das suas obras-primas – e todas me emocionaram tanto quanto me fizeram por um instante mais feliz. "Luzes…", porém (por que será?), é infalível. A cena final, que já sei de cor, toca-me de forma tão profunda, que eu nunca, nunca consegui conter a lágrima rebelde. Preparo-me, e aí vem a florista "cega" tocando a mão de Carlitos: "É você?" – não tem jeito, lá vou eu de novo enxugar acanhadamente os olhos. E ainda bem que isso acontece sempre em casa. Cinquentão e chorão é um pouco demais!

Foi Chaplin, guardo esta certeza, quem inventou o cinema como ele deve ser – fazendo rir, chorar e pensar. Como a vida, que teima em imitar a arte (ou será o contrário, meu caro Elinaldo?). Aquele homenzinho continua no meu céu particular. Seu talento, cunhado no sofrimento da infância londrina paupérrima, apareceu para o mundo quando ele tinha apenas 12 anos e estreou no teatro. O filho de pai alcoólatra e mãe atriz mambembe e muito doente  havia reservado para nós, pobres mortais, a revelação da sétima (e nova, então) arte.

Jovem ainda, quando o sucesso já lhe acenava ruidosamente em Londres, resolveu "fazer a América". Primeiro, nos palcos. Depois, definitivamente, nos precários estúdios da época. Não demorou muito para que o público percebesse que algo de novo acontecia na história da humanidade. Entretanto, mesmo famoso e rico, Chaplin – com o seu vagabundo – nunca se esqueceu que "é impossível ser feliz sozinho".     

Impressiona-me, até hoje, que "O Grande Ditador" tenha sido idealizado em 1937, antes que o resto do mundo atinasse para a eclosão do ovo da serpente. Iniciado no ano seguinte, sob fortes restrições dos produtores americanos – e ingleses também -, o filme foi lançado em 1940 e se tornou logo um estrondoso sucesso (foi vetado no Brasil pela ditadura Vargas, simpática ao Eixo, em 1942).

-Se eu já houvesse tomado conhecimento dos horrores que aconteciam nos campos de concentração alemães, não teria podido realizar "O Grande Ditador"; não teria podido fazer graça à custa da demência homicida dos nazistas.

Mas fez, e como poderosa arma contra o facínora que se tornou um dos maiores assassinos da história. E Chaplin fez mais. Enquanto a palavra de ordem nos Estados Unidos era "deixemos que alemães e russos se dessangrem" (os EUA ainda não haviam entrado na guerra), o pequenino e destrambelhado vagabundo se lançava na extenuante tarefa de conseguir – entre os aquinhoados americanos – ajuda ao Socorro de Guerra Russa. Numa dessas reuniões com ricos e poderosos, Chaplin foi tão lúcido quanto um dos seus personagens em "O Grande Ditador":

-Não sou comunista; o que eu sou é um ser humano e penso reconhecer as reações dos seres humanos. Os comunistas não são diferentes das outras pessoas; se perdem um braço ou uma perna, sofrem tanto como qualquer um de nós; e morrem como todos morremos. A mãe comunista é igual às outras mães. Ao receber a trágica notícia de que seus filhos não voltarão, choram como chorariam as outras mães. Não é preciso que eu seja um comunista para saber disto.

Não era assim que pensava boa parte da população americana – impulsionada pela propaganda – no pós-guerra, ou na Guerra Fria, com o fim da catástrofe nazista. Sua persistência em pedir a abertura da "segunda frente" contra os alemães não foi esquecida pela elite política que sucedeu Truman e entorno. Chaplin foi "cobrado" pelo seu humanismo da forma mais vil. Enfrentou um processo na Justiça por conta do seu envolvimento com uma alpinista social; foi enxovalhado pela imprensa, e, mesmo absolvido, não demorou a entender que seus dias no "novo mundo" haviam chegado ao fim.

Praticamente expulso dos Estados Unidos, concluiu sua longeva e espetacular vida nos campos da Suíça. As homenagens posteriores não abrandaram a humilhação que o doce e genial vagabundo sofrera – por parte de autoridades, jornalistas, artistas e parte do público que tanto o aplaudiu. Não foi Chaplin quem perdeu.

Eu espero ainda poder rever muitas vezes as obras do mestre. E, quem sabe?, um dia assistirei a "Luzes da Cidade" sem derramar uma lágrima sequer. Mas aí, talvez, o mais seco sertão tenha se alastrado por minha alma.

 

 

 

 

 

 

 

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  • Mário

    Ricardo, discordo do discurso piegas de Chaplin que talvez tivesse mesmo certa simpatia pelo comunismo. Classificar os russos como “comuista” é um erro. Comunistas eram seus líderes, comunista era Stalin, o povo apenas sofria sob seu tacão.

  • Mário

    Outra coisa que o jornalista esquece é que, quando o comunista Stalin trouxe a grande fome com a coletivização dos campos, quando milhões morreram de inanição, o país que mais enviou recursos para os russos foram os EUA. E sem precisar de discurso de Chaplin.

  • Mário

    Mais um “esquecimento” do jornalista. O fato da população americana não querer ajudar os russos no esforço de guerra não é coisa de propraganda. O bloguei esqueceu-se do pacto Ribbentrop-Molotov assinado por Stalin e Hitler?

  • Mário

    Foram os russos quem soltaram a coleira do lobo, foram eles quem deram carta branca para Hitler e sua blitzkrieg. Isso não é “propaganda”. A União Soviética sempre teve pretensões expasionistas e o louco de bigodinho servia bem a essas pretensões.

  • Mário

    Sabe o que é propaganda, Ricardo. Já ouviu falar do massacre de Katin ou “esqueceu” dessa história também? Durante 50 anos a URSS atribuiu o massacre de 20 mil prisioneiros poloneses aos nazistas. Agora se sabe que foram os Russos que, em 1940 mataram covardemente esses prisioneiros.

  • Mário

    Vale lembrar que quem ocupava essa parte da Polônia eram os russos, graças a acordo firmado com os nazistas! Perdoe a minha ignorância, mas o humanista Chaplin também foi pedir ajuda para a sua Inglaterra e para a França ou só para os soviéticos?

  • Mário

    A coisa muda um pouco de figura quando vista dentro do contexto. Os “famigerados” americanos, que já haviam socorrido os povos soviéticos quando da fome apocalíptica produzida pelo desumanidade do comunismo, deveriam mesmo mandar ajuda para quem foi um aliado de primeira hora de Hitler?

  • Ivo Rytchyskyi

    Compartilhei com você das mesmas emoções ao assistir os filmes de Denys Arcand. Desses filmes que fazem pensar e sair do cinema diferente de como entrou, e não, vazio, como maioria dos filmes atuais. Recomendo “O declínio do Império Americano!, do mesmo autor; ainda melhor. Abç!

  • Silvia

    Ricardo,não se engana…vc irá chorar tantas vezes sejam necessarias pra demonstrar que vc além de inteligente,é sensivel as coisas do mundo,sejam elas passadas há um tempo atráz,ou vividas nesse nosso mundo veloz da atualidade.Para o amor,não existe idade temporal,tudo é novo,atual…bjs

  • Jordan Costa

    Ricardo,esta frase resume a sua boa lembrança do genial vagabundo:”Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando, falei muitas vezes como um palhaço mas jamais duvidei da sinceridade da platéia que sorria. – Charles Chaplin

  • silvana maria de barros santos

    Admiro Chaplin não só por sua genialidade, mas pela sensibilidade em captar emoções como rir ou chorar, pois seus filmes mostram isso qu é a essência em ser humano. Como v.c, eu choro até hoje quando vejo um filme de Chaplin ou algum documentáriosobre ele. Silvana Barros

  • Roberto Costa

    Ricardo, concordo plenamente com as suas opiniões. Infelizmente o preconceito continua enraizado em nossos corações e mentes. Muitas pessoas não conseguem enxergar um futuro diferente a não ser os da exclusão dos que pensam contrário.

  • fernando andrade

    È necessário ter sensibilidade,discernimento e senso de humanismo em ter-se emoções nas coisas mais singelas e profundas como estes exemplos cinematográficos por vc citados.Nós sessentões também choramos e espero que nem o mais tórrido dos sertões sequem nosssas emocionadas lacrimais!rsss

  • Geraldo de Majella

    Chaplin é um gênio. A intolerância que o mundo viveu com a ascensão do nazismo e no pós-guerra do marcarthismo não admitia a existencia da beleza da arte chapliniana, que é em última instância, a expressão do humanismo, do pacifismo. Geraldo de Majella

  • Ruth Vasconcelos

    O “cinema mudo” de Chaplin ressoa como gritos nas mentes sensíveis;revela,singelamente,a (bela e feia) condição humana.Mas… são poucos os que têm sensibilidade para captar sua genialidade. Faço um pedido aos cinqüentões: não percam a capacidade de se emocionar, e, se preciso,chorem!

  • robson lima

    inquestionavel o seu artigo,parabens.

  • Celso pós Paracelso

    O maniqueísmo sobrevive. Os mocinhos, os bandidos … Arre, não aprendemos!!!! Como é difícil discutir essas questões. Sair de Chaplin para falar da escória. Só lamento que ele não pudesse se amparar no nosso querido gaúcho: “Eu passarinho, eles passarão.”