Final de tarde, no meio da semana, e o telefone toca na redação. Do outro lado, um personagem inesquecível da história recente do movimento social de Alagoas: Antônio Manoel Góis, "a voz da greve", como ficou conhecido. Tendo retornado – na virada do milênio – ao Rio de Janeiro, onde havia morado durante muitos anos, o contato entre nós se perdeu. Difícil era esquecê-lo.

  Lembro a primeira vez em que vi, pessoalmente, aquela figuraça. Era o dia da eleição, em 1982, e eu chegava à TV Alagoas para entrevistar alguns eleitores que reclamavam que não tinham podido votar. Deparei-me com a cena: Antônio Manoel, em pé numa cadeira, bradava bem alto:"Enquanto o povo não pegar em armas, de nada adianta essa história de eleição. É tudo uma farsa". Me assustei tanto quanto aqueles humildes moradores do Jacintinho, que mantinham os olhos pregados no orador incendiário. Era ele, só podia ser ele.

  Três anos depois, estávamos na redação do semanário "Luta Popular", improvisada na Tribuna de Alagoas, já funcionando no bairro da Mangabeiras. Fazíamos de tudo, ali: reportagens, textos, revisão, montagem, definição de primeira capa, e até a entrega dos jornais nas bancas, ao amanhecer da segunda-feira (o jornal era todo feito no domingo.) Certo dia, fechada a página de esportes, de responsabilidade do nosso Antônio Manoel, vimos – eu, Ênio Lins,Plínio Lins, Mineirinho e Manoel Viana – a manchete principal: "CRB está no catafalco". "O que?", perguntamos em uníssono. Ele explicou,  didaticamente, e impôs brava resistência até admitir que "à beira da morte" resolvia o problema. Mas foi duro.

  Até porque o homem era duro na queda. Locutor de todas as manifestações populares – sindicais, de mulheres, estudantis e o que mais aparecesse -, certa vez sentiu "a força da repressão", a quem ele atingia sempre com um direto no queixo – verbal, que se diga. Neste dia, uma das muitas greves gerais no Governo Sarney, estava ele sentado dentro do carro de som, falando sem parar e sem aliviar no discurso. Chegou a polícia e deu um "basta!". Ele não atendeu. Os policiais cercaram o carro, ele travou a porta e continuou falando. Os PMs arrodearam até o lado do motorista, mas ele, Antônio Manoel, só depôs as armas depois da ameaça de prisão ao pobre homem que dirigia o carro. "Eu me entrego", rendeu-se, finalmente. Cumpriu, com altivez, algumas horas de cárcere, na condição de preso político.

  A essa altura, não havia ninguém em Maceió que não reconhecesse a "voz da greve". Era uma presença cotidiana na cidade, sempre protestando em nome de alguém ou de algum grupo social. Incansável.

  Num outro dia, no final da década de 80 (século passado), após fazer uma matéria no Palácio dos Martírios,  fui abordado pela esbaforida secretária do vice-governador. Ele, Moacir Andrade, precisava falar comigo urgentemente."O homem está uma pilha", me disse ela. Andei até o gabinete do vice e fui recebido por um Moacir Andrade indormido, olheiras arroxeadas, olhos desabando."Peninha, você precisa falar com o nosso amigo. Eu não agüento mais", apelou Moacir Andrade.
 
  – Que amigo?
 -O Antônio Manoel. Todos os dias, de manhã, de tarde, de noite, ele passa aqui pela porta do Palácio em alguma manifestação, naquele carro som. É só protesto, eu sou o ditador, o infame, o truculento, o carrasco dos trabalhadores.(Os dois eram amigos e conviviam juntos desde a adolescência, em Penedo, terra natal de ambos.)
 -De manhã, ele passa:" Nós, trabalhadores alagoanos…"Tudo bem, ele é trabalhador. Mas aí ele volta à tarde:"Nós, bancários …" Está certo, ele é do Banco do Brasil. Só que no dia seguinte, a mesma voz: "Nós, professores da rede pública…" Eu nunca soube que ele era professor, mas até aceito. Só que ontem, já no começo da noite, eu me preparava para descansar, quando passou o carro de som. Era ele, e dizendo:"Nós, os estudantes secundaristas…" SECUNDARISTAS, Peninha? Eu não suporto mais!

  Teve de suportar até Antônio Manoel resolver voltar ao Rio de Janeiro. Na conversa ao telefone, esta semana, perguntei o que ele estava fazendo da vida. Foi a deixa:
  -Estou ajudando a montar uma rádio comunitária, com o pessoal de uma comunidade aqui perto. A especulação imobiliária quer tirá-los da área onde eles moram há mais de 20 anos, mas nós não vamos deixar.(E alteando a voz) Será que pobre não pode morar à beira-mar?

  Um dia há de poder, Antônio Manoel, quando tivermos muito mais brasileiros iguais a você.   

 

 

 

 

 

 

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  • chico

    Caro Ricardo Mota, é desse homem que estamos precisando agora, convide a ele para que volte e ajude os Alagoanos, nessa luta desigual contra a famigerada CORRUPÇÃO.

  • carlos alves

    Bem vindo Antonio Manoel, vc retornou na hora certa, nossas passeatas tinha mais forças com vc. Vamos a luta.

  • sérgio

    Imagino como foi melancólico para você escrever este artigo. Digo isso porque o que vemos hoje é o aparelhismo de estado:UNE,CUT e MST. Tem militante que chega à receber 5 mil por mês, para defender o governo medíocre. Também pudera o PT nunca estudou o socialismo. PT do oportunismo.

  • sérgio

    Insisto: Fica dificil para você, ouvir um general bradar forte, e no dia seguinte o presidente dá-lhes um generoso aumento e ainda ouvi-lo, elogiar os generais Médici e Geisel, quando sabemos que estes caras executaram centenas de Antonio Manoel. Os civis fora do aumento. É duro!

  • sérgio

    E insisto mais: Aqui em Alagoas é duro admitir o que estamos vendo. O movimento social seletivo. Faz zuada pró-Lula e faz zuada anti-PSDB,no mesmo assunto. Dr. Sapucaia, Dr. Coaracy, Dr. Super Luna, Dr.Braga, Rui, Mendonça Neto e você, são agora nossos lideres. Ainda bem.

  • Luciano Aguiar

    Continuo lendo suas crônicas, mesmo sem entender porque alguns cometários nosso não publicados. Os textos são coerentes, mantem a ética necessária e saõ devidamente assinados. Uma sugestão: Escreva sobre Zé da Feira.

  • zealberto

    Peninha, como bancário que fui, só tenho a agradecer a Antonio Manoel, pois a “Voz da Greve”, ajudou em algumas conquistas da classe. É uma voz que faz falta no momento. Já pensou ele agora na porta da Assembléia, gritando seus slogans!!! Bom domingo, amigo.

  • enio

    PQP, Peninha, essa foi direto no coração! Dispensa-se maiores comentários por quem teve a sorte de viver aqueles momentos. Uma grande sorte!

  • vera

    Como é difícil encontrar pessoas com o Antonio Manoel que entendem que a luta política pela emancipação humana é da coletividade. Ou seja, só seremos individualmente livres, se a sociedade for livre! Parabéns pelo artigo!

  • VALTENOR LEONCIO

    RICARDO, FIZ UMA VIAGEM NO TEMPO…AGENTE ERA FELIZ E NÃO SABIA. CONHECI O ANTONIO MANOEL E REALMENTE ERA ISSO MESMO QUE VOCÊ RELATOU… VALTENOR LEONCIO

  • Bernardino Souto Maior Neto

    Mota, há 40 anos conheci Antonio Manoel na rádio Sampaio de Palmeira dos Índios.Um dia, o Gileno Sampaio(dono da rádio) comentou: Antonio Manoel aproveita até a jornada esportiva para fazer protesto. Mas, ele dar audiência. Manoel é um figuraço mesmo.

  • Celso Tavares

    Meu Penedo, até cerca época, concedeu a Alagoas o prazer de se ver, conviver e admirar grandes figuras. Celso

  • Petrucio Manoel Correia de Cerqueira

    QUANTAS SAUDADES DA ÉPOCA DO BANCO DO BRASIL, DAS GREVES…QUEM NÃO GOSTAVA MUITO D’ÊLE ERAM OS FURA GREVES…

  • Ronaldo Alcântara

    Ha, ha, ha, ha…ha. 🙂 Dei boas gargalhadas Ricardo, lendo o seu excelente texto, e relembrando com muita saudade de Antonio Manoel. Também tive o privilégio de conhecê-lo e conviver com o seu bom humor. Obrigado, Ricardo, pelo belo texto e por nos fazer relembrar esses bons momentos.

  • Ronaldo Alcântara

    Seu texto recordou-me ainda das noites em que recorriamos ao talento dele, para gravar as fitas para as greves que faziamos nos movimentos dos previdenciários… Ele sempre solícito, nunca negou sua ajuda. Sempre nos ajudou com muito prazer, como continua fazendo agora no Rio de Janeiro.

  • Pedro Oliveira

    Assim é demais amigo. Coração de velho não aguenta porrada deste tamanho.Ingressei no radiojornalismo em 1965 pelas mãos de Antonio Manoel Góes, na nossa Rádio Sampaio.Foi um dos grandes mestres na minha vida. Você me fez ir às lágrimas.Assim não vale companheiro.

  • Elizabete Patriota

    As vezes, vc me parece saudosista. Saber de suas lembranças é uma forma de paarticipar, ainda que metaforicamente de alguns bons momentos da história dessa terra tão maltratada, sofrida e tão boa. Ósculos pra vc!

  • Ricardo Gois Machado

    Antonio Manoel – Dedé, para nós, seus sobrinhos – é o mais realista dos sonhadores. Com orgulho e amor de seu sobrinho, obrigado Ricardo Mota. Essa de “NÓS, OS ESTUDANTES SECUNDARISTAS…”foi para “desopilar o fígado” – tenho que rir, afinal este é o seu artigo de domingo.

  • IB PITA

    Foi bom recordar “o timbre” da luta destes anos importantissimos para a luta atual. Antonio Manoel representa esta ressonância. Caro Ricardo valeu “o eco” !!!

  • paccoramos

    Melancólico não foi. Certamente foi prazeiroso escrever o artigo. Agora essa história do aparelhamento dos movimentos sociais sempre existiu e não vai parar nunca.

  • Sávio

    Belo texto. Publique para ficar documentado. Um abraço.

  • josé cicero

    excelente texto, recheado de uma nostalgia que não desfrutei culturalmente (pois à época era ainda criança) mas agora posso sentir pela emoção transmitida por seus assíduos leitores. PARABÉNS!

  • marcus tadeu de alencar

    bravo amigo e corajoso,RICARDO, não se faz ANTONIO MANOEL,como antigamente,nosso amigo Dedé.Um grande abraço Rcardo, nos alagoanos temos muito orgulho de vocé.

  • Daniel Moura

    Brilhante!

  • clodoaldo mariano de oliveira

    Ricardo Motta, li o artigo sobre ANTONIO MANOEL e me lembro da minha Palmeira dos Indios, onde tive a honra de ser aluno desse lutador, ele ensinava portugues por sinal muito bom. Que saudade de Anto nio Manoel de Gois.

  • Torres

    Falta um “Antônio Manoel” para fazer com que o atual governador reduza o duodécimo ou intervenção federal da AL.

  • Edberto Ticianeli

    Grande homenagem. O “voz de greve” merece ser lembrado. Mas tem um detalhe engraçado: nas campanhas eleitorais, dentro dos carros de som que circulavam em Maceió, ele falava tanto contra os poderosos que esquecia de dizer o nome do seu candidato.

  • Manoel

    Parabéns Ricardo Mota.Falar de Antonio Manoel é relembrar varias lutas da classe trabalhadora. A diretoria atual do Sin dicato dos Bancários fica devendo o reconhecimento e as homenagens ao grande Antonio Manoel