Eu preciso de rotina para funcionar – e, hoje, mais do que nunca. Assim, tão logo teve início a pandemia do coronavírus, tratei de criar novos e necessários hábitos, e venho assumindo-os na esperança de não deles precisar, em breve.

Eles se complementam na repetição do cotidiano, trafegam meu dia e a minha noite, até que a madrugada ligue os pontos do calendário. Mistura, a minha rotina, a atividade física, o trabalho, a leitura e a sessão diária de cinema. Por ter um acervo de mais de 600 filmes em DVD (acreditem: eu tenho DVD!), a grande maioria, clássicos, têm sido prazerosas as horas que antecedem meu sono.

Eis que na semana que passou, na quinta-feira, logo cedo, decidi que iria assistir mais uma vez ao documentário sobre Vinicius de Moraes, de Miguel Faria JR. Creiam: só à noite, vendo um telejornal, descobri que vivia o 40º aniversário da morte do Poeta.

Por não ser adepto do sobrenatural, entendi como uma feliz coincidência, a que os homens também têm direito. Chegou, aceitei de bom grado, a minha vez de rever e revisitar aquele que é simplesmente o único poeta brasileiro – e há poucos no mundo – cujos versos se tornaram ditos populares, de domínio público:

Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure; ou: A vida é arte do encontro/ Embora haja tanto desencontro pela vida. 

O documentário começa com uma bela crônica de Rubem Braga, dedicada ao amigo Vinicius, que se encontra – confirmando a arte – com a magistral interpretação de Yamandú Costa de Valsa de Eurídice, uma obra-prima do poeta num instante em que ele se descuidou das palavras.

(No momento em que lhes escrevo, ouço de novo e de novo o poema sonoro. Como é bonito!)

De poeta para poeta: Ferreira Gullar disse que Vinícius começou “francês”, em versos pedantes, ainda que sofisticados, mas sem refletir a sua alma: “Tornou-se brasileiríssimo, e foi assim que morreu”.

Antônio Cândido, crítico literário rigorosíssimo, um intelectual de honestidade sem concessões, contrariou uns tantos que rejeitaram Vinicius, por ser um compositor popular – ou só popular, não importa – e afirmou com a autoridade do argumento: “Quem escreveu Balada do Mangue tem de ser poeta”. E pra quem duvida, aqui vai um pouco:

Pobres flores gonocócicas 
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Loelia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilinguidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé,
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu? 

Do compositor, que inventou a Bossa Nova e os afrossambas, disseram Chico, Caetano, Gil, Edu Lobo e Bethânia, unanimemente: “É o pai da moderna MPB”, eternamente bela e maior. Embeberam-se no vinho da devoção, do respeito admirado e afetuoso – não o respeito sisudo – ao mestre de tantos carinhos, seminal e farto.

Como me deu saudade da vida do Vinicius antes de mim, da minha vida nos tempos de Vinicius! E, então, me dei conta de que tudo que veio depois está prenhe de Vinicius. E assim há de ser por toda a minha vida.

Não, gente, eu não queria ser Vinicius de Moraes, mas se pudesse me apropriar de alguns dos seus versos, nesses tempos tão sem poesia, seriam meus os seus lamentos de Pátria Minha (1947), o premonitório poema do exílio:

A minha pátria não é florão, nem ostenta 
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar. 

Mais do que a mais garrida, a minha pátria tem 
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen que a mais
Que um dia traduzi num exame escrito:
“Liberta que serás também” 


Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez. 

Andei meio brigado com essa palavra, mas acho que a redescobri: pátria, para mim, é o país de Vinicius de Moraes.

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  • Há Lagoas

    Uma boa definição sobre a nossa pátria e o que está acontecendo com ela, pode ser observada neste verso poético do próprio Vinícius de Moraes: “Com as lágrimas do tempo e a cal do meu dia eu fiz o cimento da minha poesia”.
    Lembro-me que, ao não prestar o juramento da bandeira – por convicções religiosas – fui mal interpretado e acusado de ser um mau brasileiro. Ou seja, tive problemas para retirar minha reservista. Aquele episódio arranhou a imagem que eu tinha do exército, mas não da minha pátria. E devo isso – entre outras convicções – ao poema Canção do Exílio de Gonçalves Dias.
    Um bom domingo a todos!

    • Antonio Carlos Barbosa

      Pois é Há Lagoas, Vinicius foi um grande Diplomata brasileiro, além de poeta, jornalista, escritor, compositor e cantor. Ingressou no Itamaraty por concurso em 1943, aos 30 anos. O último posto diplomático foi em Montevideo, de 06/1958 a 06/1960. Em seu último ano, sentindo saudade de Lúcia Proença, sua quarta mulher, que era tanta saudade, que resolveu pedir transferência para o Rio. O Itamaraty recusou. Em ato de desespero, escreveu aos seus superiores “preciso de fato voltar ao Rio. Não é um problema de material, de dinheiro, ou de status profissional. Tudo isso é recuperável. É um problema de amor, pois o tempo do amor é irrecuperável”, argumentou.
      A carreira diplomática chegou ao fim em 29 de abril de 1969, quando é aposentado compulsoriamente pelo Ditador/presidente de plantão Arthur da Costa e Silva, quem num memorando endereçado ao chanceler de forma curta e grossa ” Demita-se esse vagabundo”. Ressalte-se que Vinicius não era relapso como diplomata. Foi aposentado não por motivos políticos, mais sim de comportamento, sua figura livre, seu jeito informal, sua extroversão, sua boemia, suas poesias, sua alegria, era motivo de ira dos militares, que geralmente não gostam da vida e do amor, somente de guerra, vejam como vivemos nos dias atuais, que são de ódio, guerra e morte do governo do capitão das trevas Bolsonaro.
      Vinicius dizia ” ser chamado de vagabundo pelo Costa e Silva, foi o maior elogio que eu poderia ter recebido” e caia na gargalhada.
      Acredito que se vivo estivesse hoje, iria fazer o caminho de volta ao Uruguai, e nos arredores de Montevideo bater longos conversas com o ser humano da melhor cepa que é o Pepe Mujica, e retornaria somente em janeiro de 2023, para vivermos dias melhores.
      Recomendo o excelente documentário do Canal Curta “Frágil Equilíbrio” que contém várias falas do Pepe Mujica Transformadas em imagens.
      Vida que segue. Vamos em frente.

  • Juvenal Gonçalves

    Excelente texto, Ricardo!
    Ainda mais: um tributo a nosso eterno poeta.
    O poetinha que, para justificar o carinhoso diminutivo, cresce cada dia no coração de quem valoriza a boa letra.
    Letra que ele bem soube galvanizar, no incorruptível papel, todo o seu sentimento, a música da sua alma, a paixão do seu viver: por toda a nossa vida!
    Balada do mangue: quanta fidelidade na tradução de um sentimento do coração do poeta: irreverência, simplicidade, profundidade e, acima de tudo, “colocar a alma na ponta da caneta”.
    Por toda a nossa vida, Vinícius!
    Bom domingo!

  • Antonio Moreira

    Antes da pandemia, depois do meu expediente, voltava para casa para fazer o que quiser da minha vida.
    Nunca usei tanto o WhatsApp como venho usando ultimamente.
    Por conta da demanda de trabalho, graças às tecnologias, faço uso dele (WhatsApp) através do meu computador.
    Uso todos os dedos das mãos para digitar, copiar, colar e tenho uma visão maior…
    Até a gatinha (animal) me cobra atenção. Ela gosta de me vê no quintal, varrendo, pegando folhinha. Ela embola no cimentado do quintal e me segue como se fosse a minha segurança.

    Vinicius de Moraes:
    Acho que o mundo do artista é assim como um mundo de uma criança feliz, saudável,livre, etc.
    O poetinha (forma carinhosa) casou-se por nove vezes ao longo de sua vida, disse o google.
    É diferente da vida de muitos de nós, cheios de regras e obrigações(até contra nossa vontade).

    A quem pertence à “Pátria Amada Brasil”? E nos tempos de hoje?
    Eu, `”Por toda a minha vida “, desde criança, nunca me iludi com essas coisas – Pátria Amada Brasil.

    Vivemos em crise o tempo todo, ou seja, pouca gente com quase tudo (dinheiro; poder; posses) e a maioria sem chance de quase nada na vida.
    Um ou outro que conseguiu se livrar dessa desgraça com certeza encontrou muitas pedras no caminho.
    Enfim, Um país rico com tanta pobreza!
    É uma tristeza.

  • Amélia

    Maravilha, Ricardo!
    Parabéns pelo texto, pela sensibilidade, pela inteligência e pelo amor a Vinicius!
    Cada dia mais sua admiradora ❤️
    Amélia Bandeira

  • Antonio Moreira

    O meu irmão esteve algumas vezes em Ribeirão Preto – SP na casa da tia da Bruna (esposa do meu sobrinho, filho do meu irmão).
    A casa é grande, e no quarto da casa dessa senhora tem um monte de papeis escritos por Vinicius de Morais.
    Como o artista era muito namorador, é possível que tiveram alguma coisa…

    Na época, essa senhora tinha um cargo muito importante numa empresa de Revistas/Jornalismo em São Paulo.
    Foi uma época que Ela ganhou muito dinheiro e ajudou muita gente da família dela.

  • Laskdo

    Só quem está apaixonado ou já esteve, entende, gosta e escreve poesias. E Vinícius foi um eterno apaixonado, afinal casou quase dez vezes, prova de que passou a vida apaixonado. Se amasse apenas uma, não teria escrito: “olha que coisa mais linda, mais cheia de graça…” Só uma pessoa apaixonada por todas as mulheres escreveria essa obra prima, aclamada mundialmente.