Dá até para imaginar a reação de surpresa de Ricardo Ramos, filho do mais ilustre alagoano no mundo das letras. Ele tinha viajado a Salvador para visitar Vinicius de Moraes, amigo de velhas datas. Ao chegar ao portão da casa, na praia de Itapuã, foi recebido ruidosamente pelo cão Meu, nome que lhe dera o poetinha. Tanto latido atraiu o dono, que já apareceu gritando:

– Já pra dentro, Graciliano!

– Mas ele não se chamava Meu? Por que você mudou agora para Graciliano?

– Resolvi mudar. Não esqueça que ele é, antes de tudo, um são-bernardo.

Estava resolvida a questão do jeito de Vinicius – com humor e um tanto de carinho, que, de fato, havia na homenagem. Porque era assim aquele que Carlos Drummond de Andrade definiu como “único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural”.

Do jeitinho que ele próprio gostava de enfatizar nas suas intermináveis conversas com Antônio Maria, jornalista, compositor e boêmio (não necessariamente nessa ordem): “O poeta não escreve poesia; é poesia ou não é poeta”.

E foi longa a caminhada ao lado do amigo a quem chamava de “meu Maria”. Os dois viraram lenda na noite carioca, como parceiros de copo, de cruz, de confidências e, é claro, de mulheres. Impagável é o  diálogo entre ambos, ao nascer do dia, na porta da boate onde costumavam varar as madrugadas, quase nunca solitárias. Ao ver a turma do cooper nas suas agitações matinais, Vinicius cobrou de Maria:

– Prometa que nunca vamos chegar a esse ponto.

Sobre o atleta que fazia flexão de braço no calçadão, outro pedido:

– Avise a ele que a amada já saiu de baixo.

A vida lhes poupou de tal vexame. Ou a morte, sendo mais preciso. Primeiro ela levou o jornalista pernambucano e briguento – o poetinha foi dos únicos a não se tornar ex-amigo de Maria. Pelo contrário, os dois eram unidos por um sentimento visceral, só compreensível para quem tem ou teve a sorte de deparar com a amizade sem reservas, em que as almas se encontram numa esquina qualquer da vida para nunca mais se separar.

Era o ano de 1964, e um infarto fulminante tirou Maria do convívio com o que ele mais gostava: noite, mulheres, uísque e Vinicius de Moraes. O poeta estava em Visconde Mauá quando recebeu a trágica notícia. A partir daí, e até o outro dia, só lhe vinha à mente o mulato imenso, sabedor das coisas do mundo. Primeiro, narrou o poeta, viu um passarinho. Quem era? Maria. Depois, um galo. Quem? O mesmo Maria, que lhe aparecia “galo com alma de passarinho”. Na manhã seguinte, Vinicius publicou em A Manhã uma entrevista “psicografada” com Antônio Maria. Na despedida, uma mensagem provocativa para o ditador de plantão, Castelo Branco, a sensação da morte – tudo narrado pelo próprio morto.

Pois é, amigo identifica as nossas qualidades, mas conhece também os nossos truques. Com a dupla não era diferente. Hóspede frequente de Vinicius, em Paris, na década de 1950, Maria estava com ele naquela noite em que o poetinha, depois de algumas doses, resolveu ir para casa mais cedo. Conta o biógrafo de Vinicius, José Castelo, que os casais que os acompanhavam relutaram em abandonar a noitada no Elephant Blanc, um dos lugares preferidos do autor de “Eu sei que vou te amar” – pela boa música, principalmente. Como demorassem, ele partiu. Quando, enfim, os outros resolveram sair, se depararam com aquele quadro assustador: o poeta estava desmaiado no jardim. Todos correram apressados para socorrê-lo, menos… Antônio Maria. Este sugeriu que lhe afrouxassem o cinto e desabotoassem a sua calça: “Ele precisa respirar melhor, senão acaba vomitando”. Finda a frase, e iniciado o primeiro gesto para abrir-lhe a braguilha, um Vinicius redivivo e indignado protestou com uma pergunta:

– Vocês sabem que eu não uso cuecas?

Amigo também apronta.

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  • Juvenal Gonçalves da Silva

    Belo e saudoso texto, Ricardo, o Mota!!!

    Seu texto de hoje até me inspirou a escrever algo que, por me identificar, bastante, não tive coragem de publicar…

    Boa semana!

  • Antonio Moreira

    O mundo do artista

    viver a vida do seu jeito
    assim como a cigarra, viver para cantar.

    Correr, se preocupar com o amanhã!,
    isso é coisa de gente feito a formiga,
    trabalhar, trabalhar e trabalhar.

    E a morte? A morte é para todo mundo!

    Não faltando na minha festa: mulheres, bebidas, cigarros, amigos e paz,
    pode ficar com o seu *ceuzinho* papai do Céu(Deus)!

    * lembrei de uma conversa de Ariano Suassuna.

    Simples lembranças de uma pequena demonstração da vida de um artista desconhecido.
    O Ananias (Sidney Silva – Cantor e compositor), irmão do meu cunhado.

    Lembro-me, quando o Cantor ia na casa da minha irmã,
    logo apareciam muitas moças e ele não parava de cantar, tocar violão,
    bebia, fumava. Enfim, parecia que vivia em festa o tempo todo.
    Ele se apresentava no programa popular de Televisão do Bolinha – SP.
    Tinha uma boa relação com bandas de forró…

    https://www.immub.org/album/cpd-sidney-silva

    • Idosamente MONGE no Sertão: busca SUS sem úi nem Ái!

      Em CONTO nóiX se ilude acá na Terra de 7 palmos, Antonio … úi!

      > Em D E S C A L A B R O S escalafobéticos quase afinados,
      – no limite d’instrumentistas de ocasião?
      > OU na pobreza melódica de quaisquer músicas populares,
      – P R A P U L A R ou arrastar: F O R R Ó seria diferente? … ái!

      > Com melhores MÚSICOS em escolinhas desde 5 anos de IDADE em NoruÉGUA,
      – melhores melodias haveria porcas torce-rabo, ~95% toca algum instrumento
      > São pessoas em cidades ARBORIZADAS com inverno rigoroso, quarentena nevosa.
      – Aqui de sertões a litorais com serras agrestes NORDESTE: somos cidades DES-praçadas!

  • Aristeu Barbosa da Silva

    Lindo Texto Ricardo Mota ! Parabéns ! Que bom que vc migrou da seara política tão carregada e cansativa para o lindo tema Amizade !!!

  • Há Lagoas

    A maior dádiva da vida é ter um amigo.
    Texto magistral!
    Uma boa semana a todos.

  • Luiz R S Filho

    Amigo é pra essas coisas…..bem dito pelo agora saudoso Aldir Blanc, na poesia musicada e imortalizada na interpretação do MPB4.
    Amigo é pra se guardar….. como na Canção da América, seja o que vier, venha o que vier, de Fernando Brant e o Milton.
    Amigos de todas as horas, de copo, de prosa, de causos, de longe ou de perto. Sempre AMIGOS.

    Um bom São Pedro para nós….e claro….pros AMIGOS.

  • CICERO FREDERICO DA SILVA

    É um texto cheio de verdades, me deparo com gente nesses momentos de pandemia, com um vocabulário ácido, pouco assunto de qualidade.
    Bem, vou falar de amizades ,de respeito ao jeito de como cada um é.
    Meu primeiro amigo foi meu pai e minha mãe, hoje com minha esposa e três filhas, que maravilha.
    Meu ciclo aqui no residencial Graciliano Ramos, mantenho amizades respeitando cada posição.
    É como dizia aquele homem:AMIGO PRIMEIRO É AQUELE QUE NÃO LHE DÁ PREJUÍZO, E SE MANTÉM NUMA CONDUTA ILIBADA.

  • Democracia ao PONTO: garçon + 1 cana, tira gosto SARDINHA péÓóRrrrr sem ELA!

    > E com o impixado 1992, já ERA telefone com DISCO
    – enfia o dedo e roda, cantava a Banda PINGUIM (1987-2001)
    # Almir Rouche (voz) e Paulinho Pimpão (guitarra) + Chacal (baixo)
    * Marcos César (teclado) e Gordinho (bateria) + Nikima (percussão).
    Em o2′ 27″ _ https://youtu.be/5z5X56uBqcs

  • ANSELMO CARVALHO DE OLIVEIRAE

    Excelente texto, vc nos faz lembrar de muitos episódios ocorridos em nosso país, obrigado por sua sapiência, sou sergipano de nascimento, fã de tudo que que vc produz,abracos.

  • Antonio Carlos Barbosa

    Velho Mota! Quem tem amigo, vive infinitamente melhor.
    Grande abraço.

  • Laskdo

    “Amigo é alegria na alma
    Tristeza na dor
    Ausência na precisão“

  • Edson José de Gouveia Bezerra

    …leve e solto. Belo texto meu grande…