Era apenas mais um jogo da seleção do Colégio Marista, num dia de sábado. Como sempre acontecia, contra alguma escola rival.

O nosso time era bom, e eu, pequeno e magricela, nem sonhava em formar ao lado do esquadrão que tinha alguns ótimos jogadores – todos de um porte físico que não adquiri em tempo hábil.

Num lance fortuito, o goleiro titular da seleção do Marista resolveu devorar um frango inteiro, em plena manhã ensolarada. Foi aí que alguém gritou: “Bota o Sabonete”.

Aplauso geral.

Não sei por que, mas este era o codinome do nosso segundo arqueiro, um loiro meio ruivo, alto para a idade, que estava à beira do gramado esperando a chance de entrar no jogo e, quem sabe, consagrar-se diante da animada e muito jovem torcida.

Foi aí que começou o drama do personagem. Passamos a gritar, uníssono, repetidamente e cada vez mais alto, o nome que nos pareceu tão sonoro, naquele momento: a cada “Sabonete”, batíamos palmas três vezes, e só em seguida repetíamos o grito.

Coisa de menino, era verdade, mas que foi tomando uma dimensão inesperada. De repente, Sabonete (já não lembro o seu nome, perdoem-me) seguia à frente de um batalhão de garotos que gritavam, a princípio, como gozação, depois, com uma inexplicável fúria. Ele, tentando escapar do cerco, sem conseguir; nós, acompanhando-o pelos corredores e escadas do colégio – e o jogo deixou de existir para aquela multidão mirim.

Durante muito tempo, lembrei-me da cena com algum incômodo, sem saber exatamente por qual motivo. Conversando com um amigo que me acompanhava na perseguição ao Sabonete (o Fred, ele mesmo), chegamos à conclusão – algumas décadas depois – de que a marcha havia ultrapassado a brincadeira. Carregava algo de perverso, uma perversidade coletiva e contagiante.

Tantos anos após, leituras variadas sobre o tema, experiências vividas por um sessentão, dei-me conta de que, ali, eu era parte de uma manada, arrastado por uma emoção incontrolável, por mais que parecesse então apenas “coisa de menino”.

Sinto um leve arrepio, ainda agora, sempre que recordo do episódio. Que me serve de lição, também, para entender – ou tentar fazê-lo – o que acontece hoje, mais do que ontem, na formação de multidões amalgamadas por emoções e nenhuma razão, praticamente.

Freud alerta (em Psicologia das massas e análise do eu) que na multidão “todas as inibições individuais são anuladas e todos os instintos cruéis, brutais e destrutivos, que dormitam no indivíduo como restos dos tempos primitivos, são despertados para a livre satisfação dos impulsos” (o cara sabia das coisas).

Será que ele apontaria a cultura do ódio, que circula livremente nas redes, como uma manifestação das “novas” massas, engajadas, “conectadas e líquidas” (Bauman)?

Eu não tenho a resposta, embora guarde fortes suspeitas sobre causa e efeito do caminhar do universo virtual – para tantos, o mundo real e inquestionável.

Até entendo que nem sempre as comunidades on-line se reproduzem em comunidades off-line, mas imagino que quando isso acontece é tão pouco o que une os comunitários quanto nos era naquele distante sábado, da década de 1970, o clamor pelo “Sabonete” – o sentimento primitivo, tribal, a emoção despida de razão.

O cientista da computação e escritor Jaron Lanier (Dez argumentos …), que vive e trabalha no icônico Vale do Silício, sugere uma boa saída para essa armadilha na qual entramos sem notar e de bom grado: “Processos coletivos fazem mais sentido quando os participantes agem como indivíduos”.

Não, eu não gostaria de me enxergar de novo como parte de uma manada.

Carimbão avisa que vai assumir sua secretaria estadual em 2020
Vejam só do que esses argentinos são capazes!
  • JEu

    Bom dia, Ricardo. Realmente, uma multidão ou aglomeração de razoável número de pessoas, ao que parece, favorece o “afloramento” de instintos e sentimentos normalmente reprimidos, tanto para o mal, quanto para o bem… pois, se hoje vemos pessoas (e não importa qual sejam os motivos, interesses, razões, ideologias, etc, etc) se comportarem, como dito no texto, como “manadas”, “massas de manobra” de grupos ou indivíduos que sabem como “manipular” esses sentimentos, instintos ou desejos que, na maioria das vezes, carregamos de maneira “inconsciente” ou muito próximo da consciência individual que, em grande parte, são contidas como comportamento individual por medo do ridículo ou da repressão social e/ou policial… e é pertencendo a um “ente coletivo”, creio, que então esse medo ou receio perde os “freios” e extravasam de forma, muitas vezes, irracionais… é algo parecido, como tentou explicar um dia um professor, com a diferença entre amor e paixão: amor, disse, é como um rio que corre perenemente, desde sua nascente até alcançar o mar e, nesse ínterim, promove toda a sorte de bem estar para quem lhe colhe os benefícios; e paixão é como uma barragem (Deus me livre da de Brumadinho e outras…) que estoura em determinado momento e, em sua passagem, só deixa como rastro a destruição… então, creio, que o melhor caminho está muito bem indicado… por isso foi que Jesus nos aconselhou a sempre agirmos com paciência e resignação diante das circunstâncias que não podemos modificar, ao anunciar: “se alguém te obrigar a caminhar com ele mil passos, avança com ele ainda mais dois mil”… e como já antecipando os maus instintos que carregamos, também recomendou: ” perdoa não só sete vezes, mas setenta vezes sete vezes” (o que significa setenta elevado à sétima potência… alguém pode fazer as contas). Bom domingo.

  • Roberto

    Determinado tipo de gado que faz parte de uma manada estúpida não vai entender o texto.

  • Antônio Carlos Barbosa

    Pois é velho Mota, as eleições de 2018, foram marcadas e dominadas pela psicologia das massas, através das redes sociais, por candidatos e eleitores. De forma gigantesca, cada indivíduo tornou-se uma mente grupal. Despereceu a personalidade consciente, tornando-se uma massa humana (efeito manada). Perigosamente a manada vai diretamente aos extremos, se uma suspeita é expressa, ela instantaneamente se modifica numa certeza incontroversa, uma troca de antipatia se transforma em ódio furioso.
    Uma manada de pessoas, acreditaram que elegeram um líder capaz de expurgar, de limpar a nação de toda sujeira do passado, desconsiderando fatos e argumentos importantes. Um líder que discursa bobagens perigosas, legitima posições odiosas e sinaliza retrocesso civilizatórios e agora a capa da moralidade clamada pelo candidato, caiu e a manada não enxerga o mito Bolsonaro como igual aos políticos que ele atacava, pois a corrupção do seu Clã (seus filhos) e apoiadores, são iguais ao do governo passado, negociando com o congresso e STF da mesma forma de governos passados.
    De outra banda, a manada petista, não quer enxergar que o Mito Lula, roubou e deixou roubar a nação com força e após deixar o governo, passou Lula através de sua influencia e criador da Dilma, nos governos da mesma, a ser corretor de empreiteiras, viajando o mundo nos jatinhos dos empreiteiros, conseguindo as obras e o financiamento no BNDES, recebendo sua propina, através das palestras milionárias pagas pelas empreiteiras .
    Assim, tanto Lula quanto Bolsonaro, precisam serem desmistificados pelas manadas, pois ambos, atuam e praticam atos contra os interesses do povo, e continuam sendo venerados pelas mandas da esquerda e da direita. As manadas não enxergam as profundas incoerências entre as ações e as ideias do Lula, do Bolsonaro e de praticamente todos os políticos brasileiros. Basta uma análise dos políticos alagoanos, como a composição da assembleia legislativa alagoana e do congresso nacional.

  • Apareceu a margarida, MOROu? – Olê, olê, olá! – ÁS na manga ou cavalo de Troia?

    Um BOM domingo, caro Ricardo … uÁu mamãe!!!
    > Em CONTO a manada segue p’ABATE, é Trump?
    > O emabaixador EXU […] q papai quer tê c’U$A? [Domingo 18ago19]
    https://www1.folha.uol.com.br/colunas/eliogaspari/2019/08/o-embaixador-eduardo-bolsonaro.shtml
    > Mimimimimimimi (6 Xs) … $exy mE (2Xs) … Silêncio agora!
    – Eu posso, motherocker te dar completa felicidade!
    [I can, motherocker give u complete bliss!]
    > I got your Wow wow! … ÓIA mô bumbum, beijinda!
    [Look at my bottom, give it a kiss]
    > EU sô drupper super pupper, a garota da frente na rodada!
    [I’m the front girl in round!], lábios cor de rosa
    > I am so cool with my fashion pink lips … empilhar dinheiro cai
    [All the boys say: Wow wow! … Girls in the back same: entre na festa!
    # Call me dandy candy cause I’m high, high! … peitões incríveis em 3′ 17″
    > No chão! [On the ground! … Mimimimimimimi TROCENTAS vezes, paiPai!
    https://youtu.be/Iv4x0TC-1Qg

  • Maria

    As pessoas precisam de aceitação e muitas vezes os tornam irracionais diante de varias situações, alem da necessidade de ser estimuladas a ter o arbítrio nas mãos. Por diversas vezes nem acreditam naquilo, mas o receio (medo) de errar sozinho interfere diretamente em seus comportamentos. Vivemos um momento de inversão de expectativas onde o cobertor é muito curto entre a civilização e a barbárie (é falsa a idéia de achar que o povo é pacífico).O povo tem medo é do futuro previsível… Os gladiadores diziam já no interior da arena: “Aqueles que vão morrer te saúdam”. Em outro contexto temos a lição de esperança de Maquiavel : ”O valor contra o furor”. Bom domingo!

  • Fernando

    Uma vez ouvi um sociólogo dizer: “ a ignorância é uma benção!” Ele afirmava isso se referindo aos jovens, que não enxergam a profundeza dos seus atos. Depois de ler o seu texto posso dizer: “a ignorância é uma maldição!”

  • Há Lagoas

    Por isso, meu amigo, o máximo que faço na internet, é ter um velho e-mail e comentar – quando possível em seu blog.
    Me sinto muito mais seguro assim.

  • Lucas Farias

    Prezado Ricardo, excelente reflexão. Compartilhamos dessa preocupação sobre o comportamento das massas, nas quais as individualidades se diluem e a coletividade disforme se movimenta, impulsionada pela simplificação da linguagem e pela exaltação anímica de sensações primitivas, como ódio, medo, preconceito, recalque, frustração etc. A internet, lamentavelmente, na trilha dos misteriosos algoritmos das redes sociais, tornou-se terreno fértil para a propagação da intolerância e da ignorância, uma vez que qualquer “informação” massivamente disseminada em bolhas e grupos de afinidade ganha status de verdade, sem chance para reflexão, contraditório, debate racional. Essa experiência escolar que o amigo rememorou me fez lembrar do filme “A Onda”, que trata de experimento iniciado por um professor para disseminar o fascismo em sala de aula. Vale a pena conferir. Um abraço.

    Meu caro Lucas:
    Ao escrever esta crônica, lembrei também do filme. Tenho as duas versões: a alemã e a americana. Esta última, despretensiosa, me parece bem superior.
    Valeu a dica para os nosso leitores.
    Como sempre, os seus comentários complementam – com conteúdo – este blog.
    Sou grato por isso.

    Saudações democráticas,
    Ricardo Mota

  • Lucas Farias

    Prezado Ricardo, agradeço com alegria, porque sei que não és dado a lisonjas. Às vezes acho que atrapalho mais do que ajudo. Lembrando Drummond, acho que somos todos meio gauches na vida. Forte abraço.