A grande sensação da Copa da Rússia, mais do que o “vinho” Cristiano Ronaldo, tem sido até agora o VAR – video assistant referee –, a tecnologia do tira-teima. Há quem a considere uma interferência indevida do olho eletrônico (são vários, na verdade) naquele que continua sendo o mais popular de todos os esportes.

Eu já acho que a complexa interação homem/máquina traz uma emoção nova à partida. Segundos intermináveis de expectativa que podem gerar êxtase ou frustração. E ainda que o VAR reduza bastante as polêmicas dentro e fora do campo, não as extingue. Basta ver a reação de jogadores e treinadores de equipes “prejudicadas” pelo voyeur da estreita, friccionada e intensa relação homem/bola.

Mais contundente, entretanto, sem deixar quaisquer margens para dúvidas, tem sido a atuação dos invisíveis e impiedosos árbitros de vídeo do lado de fora dos estádios, em terras brasilis (já sem os índios).

Juízes de uma integridade absoluta, sem permitir espaços para dúvidas em suas sentenças morais, têm condenado ao definitivo fogo quem não se comporta bem no território russo. Parece que o tribunal do Facebook ganhou uma nova instância. É claro que os idiotas que desrespeitam mulheres, gays e outras “minorias” devem ser tratados pelo que são: idiotas – exatamente.

O caso de alguns jovens imbecis, ‘bêbados e febris’, que humilharam uma simpática mulher eslava, ganhou mais mídia do que qualquer outro. A repetição exaustiva da imagem – com áudio – dos tolos “isspertos” a dizerem palavrões incompreensíveis para a alegre e inocente cidadã russa representa como poucos o VAR da vida real: todos os magistrados se apresentaram, por óbvio, como as próprias sementes da virtude, diversas, mas com uma única sentença.

Advogados, políticos, diplomatas, parte significativa da elite dirigente brasileira, se manifestaram como se ali tivesse sido cometido um crime de lesa-pátria. Porque estavam eles, assim me parece, em terra estrangeira. Por aqui, a nossa tolerância ou indiferença com atitudes em tudo iguais – se não, piores -, é a marca de um comportamento predominante.

Diariamente, mulheres – e não só elas – são humilhadas no Brasil, no nosso território, à nossa frente, sem que expressemos a mesma contundência e rejeição aos imbecis que replicam uma cultura ainda majoritária, inalcançável pelo VAR da nossa civilidade e/ou consciência coletiva.

Os torcedores/turistas brasileiros estariam manchando a imagem de um povo, junto às nações amigas, que não corresponderia à verdade dos fatos.

E o que diz a nossa paisagem?

Mãe de todas as violências, esta que é cotidianamente praticada no Brasil revela um país mais do que machista, misógino.

As estatísticas últimas garantem que uma mulher é agredida a cada 15 segundos por aqui: a maioria negra, a maioria pobre (ainda que isso soe como clichê).

Só em 2017, foram assassinadas 4.476 mulheres no Brasil.

O mais terrível: 946 casos são considerados feminicídios. Ou seja: mulheres que foram trucidadas simplesmente porque eram mulheres!

Pierre Bourdieu, o sociólogo e pensador francês, que morreu em 2002, afirmava, categoricamente, que aquilo que não aparece na televisão não existe para o mundo. No nosso noticiário televisivo, que não provoca reflexão, cada caso começa e termina em si, nada revelando de uma cultura que perdura impunemente – da construção do ato extremo nas pequenas doses de violência diária.

Eis o que já aparece como uma ausência marcante na nossa vida: não temos um VAR pessoal ou social que grave as imagens da nossa estupidez cotidiana, para que façamos o julgamento instantaneamente, corrigindo os erros no momento exato em que são cometidos – e eles são tantos!

Nietzsche, que ressaltava como primordial para a formação dos indivíduos “a autoconsciência crítica”, não só conhecia como confirmava Tales de Mileto, para quem a mais difícil entre todas as coisas é “conhecer a si mesmo”. Para se conhecer, por óbvio, é preciso antes olhar e enxergar.

Infelizmente, por ora, o nosso VAR só grava e julga as faltas alheias – e quando elas chegam às mídias.

(Em tempos de Copa: não foi pênalti no Neymar. Acertou o juiz – ou foi o VAR?)

 

Loucura é pouco! PR de Maurício Quintella se divide entre Bolsonaro e Lula
O desembargador Washington Luiz e a ética de Pitágoras
  • ROLAND FREIRE

    Os mesmos julgadores das idiotices dos brasileiros na Rússia, tem em seus smartphone, vídeos da filhinha dançando “baile de favela” e já compartilhou com toda a família e todo mundo acha lindo.

  • Antonio Moreira

    Vi na televisão torcedores argentinos espancando o adversário estrangeiro após o jogo…
    E o comportamento de grupo de brasileiro na Russia? Por dedução, O pessoal tem tudo para ser um grupo diferenciado financeiramente aqui no brasil…
    Nunca gostei de fazer a minha atividade física acompanhado de colegas que ficam mexendo com moça/mulher por onde a gente passa(va). Aqui, vejo, motoqueiro/motorista tirando ondas com mulheres que estão fazendo atividades físicas…

  • arapiraquense

    Parabéns Ricardo! Excelente texto!

    • Sertanejo ENLUTADO esperando Justiça e PAZ com FÉ

      Caro arapiraquense, … um bom dia AGRESTE!
      Um BOM Dia Ricardo MOTA de domingo a domingo:
      – apreciado na TV do meio-dia com TUDO d’hor’em hora;
      – Tnh1, um Portal BEM apreciado no SERTÃO, pois SIM!
      > E o que diz a nossa paisagem? [R Mota ACIMA]
      – MÃE de todas as violências, […] no Brasil
      – UM país mais do que machista, misógino. [CABRÃO]
      [MISÓGINO] := PESSOA com repulsa a MULHER(es).
      > AVERSÃO patológica: assassinadas 4476 [Brasil 2017].
      https://www.dicio.com.br/misogino

  • Juvenal Gonçalves

    Ricardo, mais uma vez, profundo o seu texto!
    Um V A R preventivo seria o contar até dez antes de se tomar uma atitude. Lembro do personagem Zeca Diabo: além de contar até dez, recorria ao seu padim! Acabava desistindo do seu intento “maligno”.
    Por outro lado, teremos nós eleitores, em outubro próximo, oportunidade de realizar a melhor arbitragem e, sem dúvida, dar um cartão vermelho para esses maus “jogadores” que lotam os grandes estádios (leia-se Congresso) e também os menores campos (Assembleias)…
    Os nosso VAR’s estão presentes em cada noticiário cotidiano!
    Portanto, temos o poder sermos os melhores referee’s daquela copa do nosso mundo brasilis…
    Boa semana para todos!!!

  • Luiz Antonio

    Concordo inteiramente com o brilhante artigo de hoje, os bobalhões da Copa já estavam condenados à propria imbecilidade, agora sofrem o linchamento midiático dos hipócritas, eu chamaria a belíssima russa no cantinho e jogaria o universal e respeitoso: ” I love you”, expressando o meu encantamento com tanta beleza! Há quem prefira uma roda de amigos bêbados..

  • Judson Cabral

    Parabéns Ricardo,dá para perceber que além de belas jogadas,a copa pode também,lógico com um pouco de lúcidez,nos trazer reflexões,se nos dispusermos a sermos bons observadores e menos hipócritas.Obrigado pela dica e pela deixada na marca do pênalti.

  • Há Lagoas

    Nosso VAR grava e escancara nossa hipocrisia!
    Em tempo de tantos juízes sobre a terra, é bom saber que ainda há pecadores que se autoconhecem.

  • CHIQUINHA GONZAGA

    Boa tarde Ricardo!
    Sua reflexão de hoje foi forte!
    Mas,o que esperar de pessoas que vem de um país onde todos os dias se dá notícias ruins? De tantos absurdos que vemos, para muitos já se tornou tão normal! Um lugar onde se faz piada com o assassinato de uma criança! Onde se ateia fogo em um índio que dormia em praça pública em Brasília, só para ver se era engraçado! Que não respeita o outro torcer para outro time que não seja o seu e por isso paga com a vida! Que não aceita a religião do outro e por isso maltrata! Enfim, as pessoas perderam a noção do que é bom senso! Acham que podem chegar em outro país e fazer o “engraçado” que fazem por aqui e está tudo bem, tudo certo? Podemos observar que todos os envolvidos, tem um bom nível de conhecimento, condição financeira, mas nem por isso significa que sabem o que é respeito e educação! Ter muito dinheiro não é e nunca será sinônimo de boa educação!
    Estamos vivendo em tempos de selvageria isso é verdade, mas a boa educação NUNCA saírá de moda, sobressai quem a utiliza!

  • Adilio Faustini

    Eu pensei que a Sigla VAR seria, Vai Aranjar Resultados? Um Penalt escandaloso conta a Alemanha e nadica de nada, Miranda empurrado e nadica de nada, outros erros a mesma coisa . foi feito pela Smartimatic? Não adianta as melhores tecnologia do mundo se o redultado ainda está nas mãos do ser humano.

    • Joilson Gouveia Bel&Cel RR

      Malgrado, nada obstante, a despeito de ou embora o tal “neo” VAR – video assistant referee – tecnologia científica em favor de quem decide, quando, quanto, como e “contra” quem ou “para” quem a “tecnologia tira a teima” daquilo que o mundo inteiro tem visto, viu, vê e verá ao vivo e em cores ou ON Line e direto, e o tal VAR “varre” (e tem VARrido) para baixo e bem debaixo do tapete da hipocrisia, mormente a influir nos resultados dos jogos “jogados”?
      Há, ainda (e muito), aquilo que depende exclusivamente da “interpretação” do árbitro do jogo, ainda que a regra seja clara, infelizmente! – Não irei repetir todos os casos vistos e não confirmados pelo VAR!
      Enceraria com as palavras Gilbert Keith Chesterton:
      “O pragmatismo extremo é simplesmente tão desumano quanto o determinismo que ele ataca com tanta veemência. O determinista (que, para lhe fazermos justiça, não pretende ser humano) transforma em absurdo o sentido humano da escolha real. O pragmatista, que professa ser especialmente humano, transforma em absurdo o sentido humano do fato real” – In Ortodoxia, p. 49.
      Abr
      *JG

  • JEu

    Li, alhures, alguém dizer que:”enquanto o senso de honestidade, justiça, amor universal e fraternidade ainda não fizer parte do caráter humano, de pouca monta serão as leis mais rigorosas, pois sempre se encontrarão formas de burlar-las”… então, a questão não é de “superfície” e sim de “profundidade”… enquanto não houver verdadeira educação (holística) e cultura, devidamente fundamentados em real justiça social pouco ou nada avançaremos no que tange ao respeito devido uns(umas) aos outros (outras)… o mais que se queira argumentar serão somente, a meu ver, meros argumentos…

Cancelar reply