– Safado!

– !?!?

A moça estava a poucos passos de mim, vindo em minha direção, e o seu olhar tenso e intenso parecia me endereçar um daqueles mísseis coreanos do Norte.

Não fiquei branco porque não trago no meu DNA o dom da metamorfose instantânea, como os camaleões, tão comuns na seara política. A biologia, bem sabemos e ainda que lamentemos, impõe limites inclusive para a cor, através dos cromossomos que carregamos e que nos diferenciam até de outros primatas (creio que pra pior – o meu sonho era ser um bonobo).

Só quando nos cruzamos – sem que cruzássemos – pude entender que ela falava através de algum aparelho que eu não conseguia identificar onde estava escondido. Finalmente, me dei conta de que já vira a mesma cena tantas vezes, mesmo que não fosse eu, como me pareceu depois, o “acusado” em algum julgamento kafkiano.

Aliviado e em solidariedade à jovem mulher, até repeti: “Safado!”.

Cada vez mais esta multidão de zumbis tromba pelas ruas, falando sozinha, gesticulando afirmativamente, teatralmente, nunca insinuando dúvidas, todos anunciando estar onde não nos parece que estão.

Falamos ou digitamos ao celular em qualquer lugar, sem nos preocuparmos com a privacidade que exigiríamos em situações outras, de conversações e até de intimidade. O importante é interagir com quem está do outro lado: que se danem os do entorno, curiosos e solitários com seus próprios equipamentos eletrônicos – eles, também.

Uma cena clássica de Zigmunt Bauman, em Modernidade Líquida, ressalta o quanto essa presença da ausência é um comportamento universal. Narra o polonês, que infelizmente nos deixou ainda mais órfãos e perdidos, que passou a observar, por alguns bons minutos, dois homens que se sentaram à mesma mesa em um café do aeroporto de Zurique. Haviam chegado ali juntos, cada um ‘conectado’ ao seu próprio aparelho, sem que trocassem uma só palavra.

Chegaram e saíram lado a lado, como haviam permanecido enquanto estavam sentados, após a chamada do voo que iriam tomar. E o silêncio – quase que berrando – entre eles persistiu e resistiu. Nem uma só palavra foi trocada, nem um gesto de assentimento ou discordância que sinalizasse atenção e/ou cuidado entre eles. Era como se um não existisse para o outro. A amizade de ambos se liquefez, diria Bauman (sem precisar de mudança de temperatura e pressão).

Já presenciei um quadro muito semelhante num restaurante em João Pessoa. A diferença é que lá estava um casal: ele, ao celular, lendo mensagens, falando com gentes outras; ela, na cadeira ao lado, colada, parecia um espelho do companheiro de mesa, empunhando seu instrumento de comunicação a distância, polegares nervosos e agitados. Eram de uma simetria impressionante na indiferença que os unia.

Memorialista das coisas inúteis, congelei e armazenei a cena – cenário, cheiro, cores e personagens – de anos atrás e de tempos tão atuais: ei-la, igual a tantas iguais.

Eu já revelei aqui que sempre fui um “doentinho”, desde a minha infância, andando pelas ruas a cantar, até numa altura razoável, talvez na esperança de que alguém descobrisse que ali estava um talento que o mundo desconhecia. Envelheci e continuo um cantante peripatético, ainda que alimente a expectativa de não ter me tornado apenas patético. Sempre mantive intacto, porém, o meu contato com o ambiente e as pessoas que estão instaladas nele. Ajo, interajo e me recolho, quando acho que chegou o momento. Gosto de conversar ao telefone, inclusive ao celular, mas não em meio à multidão: ainda acredito que o território do privado há de ser preservado.

Já essa nova forma de solidão (voluntária, imagino), de busca por quem não se encontra próximo, não prescinde da nova tecnologia, que está disponível e que tão celeremente se torna obsoleta. Aliás, envelheceu, troque-se o comunicador: pague dois e leve um.

Mas, reparando bem, e se a moça lá de cima tivesse falado mesmo comigo?!

– &#@!%*!

 

 

Pilar ganha nesta segunda-feira o seu Banco POP
A direita cresceu ou só apareceu no Brasil?
  • Juvenal Gonçalves

    Eita cena tão comum no nosso cotidiano, Ricardo!
    Às vezes chego a sorrir ao ver esses gestos e até esses “monólogos?” nas ruas por onde ando.
    Aí imagino o que o poeta, ou profeta?, quis dizer no “procurei, procurei, procurei te encontrar nas ruas que andei”. Hoje, vemos muitos “postes ambulantes” andando por aí… Ah, os trejeitos são muito interessantes!
    Agora lembro de uma cena um tanto bonita e um tanto rara: há um ano, aproximadamente, estava numa lanchonete, num início de noite, e vi quatro jovens ocuparem uma mesa e, durante aqueles quinze minutos em que alí estive, conversavam todo o tempo, sem se darem conta dos inoportunos aparelhinhos…
    Boa semana, de proveitosas conversas para todos!!!

  • JEu

    Bom dia, Ricardo… se a moça tivesse falado com você, então seria tarde demais para “revidar”…rsrsrs… e o pior de toda essa “comunicação” sem “aproximação” já virou um hábito… (será tão mal?!!!) que já está sendo utilizado, até, pelas “velhas” raposas da politicagem (ver o exemplo do Reinão… só que não var dar certo não… e gostaria de saber se, no site dele se pode postar opiniões que lhes são desfavoráveis…)… e, parece, do jeito que a coisa anda (pelos smartphones), logo, logo, até o “namoro” será pelos “canais” da web… será…!!!??… talvez aí esteja a solução para o problema da superpopulação do globo terrestre…rsrsrs… Bom domingo, Ricardo.

  • CHIQUINHA GONZAGA

    Realmente existem certas conversas que são desnecessárias em determinados lugares…
    Certa vez, fui a uma consulta e tinha senhora que estava conversando ao celular próximo da janela da sala… o tom de voz e o conteúdo da conversa atrapalhou bastante…
    A médica disse assim:
    – em pouco tempo de conversa desta senhora, eu já sei os segredos dela❗️Vamos respeitar, viu❗️A coragem dela em falar estas coisas aqui‼️

  • Avelar

    Retrato do cotidiano!!! Vale a pena refletir.

  • Democracia ao PONTO: garçon + 1 cana, tira gosto SARDINHA péÓóRrrrr sem ELA!

    Por Eça’s de QUEIROZ 91845-1900), Ricardo!
    > Um domingo de PILEQUINHO c’Os MAIAS(1888).
    – Proscritos?
    > Uma semana sem O Crime d’Padr-Amaro(1875).
    – Prescrito!
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Eça_de_Queiroz
    Meu celular é FIXO pós-disco, teclas e bateria 10 DIAS.
    Fica em CASA o aparelho sem face-BURRO nem Zap-falÇo!

  • Há Lagoas

    Cena do cotidiano:
    Dentro de um ônibus lotado, alguém disse: “vamos continuar conversando, mesmo sem assunto. Tenho credito que se inspira hoje, vou utilizá-los”. Foram 25 minutos de conversa fútil e até e mesmo despudorada. Doíam os ouvidos. Graças a Deus cheguei ao meu destino. Ela continuou martirizando os demais passageiros.
    Que saudade de outrora!
    Boa semana a todos.

  • Vieira

    A eterna procura dos bípedes humanos, sabe-se lá do quê, talvez da loucura! Esta sempre tão perto de nós!!rsrs

  • Maria Luisa Duarte

    VERDADE….
    Como disse uma vez uma professora: o telefone móvel (smart, iphone, etc.) é hoje em dia “um apêndice do corpo”…por vezes parece até que estão levando um livro ou uma bíblia da maneira que olham para o mesmo…e nada existe ao redor…

  • Antonio Moreira

    Gosto de atender o povo no meu trabalho(Serviço Público),
    agora, quando chega a vez da pessoa, e ela falando ao celular ou fazer eu esperar, confesso que fico puto.

    Falar em safado, me fez lembrar os colegas de trabalho:
    Antonio, e a safadeza? Eu digo : é zéééróoó!!!
    Antonio, e a conduta ilibada? Eu digo : é dééézzz!!

    Quanto a cantar, juro que não sei, mas gosto de trocar palavras e frases de músicas:

    Cálice
    Chico Buarque

    Caminhoneiro, afaste de mim essa faca! – cale-se! cale-se! cale-se!
    Não adianta me chamar de filho de quenga
    porque sua categoria não tem juízo
    eu vou roubar umas doses de óleo diesel
    para acabar com essa greve maldita!
    Afaste de mim essa faca!
    //

    Pelados em Santos
    Mamonas Assassinas

    Sua caçola furada
    está sempre rasgada
    para eu te morder
    aqui e lá nas moitas!
    rarará

    minha panela de barro
    meu feijão com arroz
    está me deixando gordo!
    rarará

    minha cocada queimada
    escarrar sem catarro
    sou assim sem você.
    rarará

    com essa feiinha não quero ficar
    porque ela doida, muito mais que doida
    rarará

  • Fernando

    O cara estava no banheiro fazendo o número dois, quando entra outro no banheiro ao lado do dele, pra fazer o número dois também. Então fala:
    – E aí como anda as coisas? – o Cara, mesmo constrangido, responde:
    – bem – outro diz:
    – Tô afim de vc!
    – oshi, que isso?! – responde assustado o cara.
    – posso ir aí te ver? – pergunta baixinho, quase sussurrando a pessoa ao lado.
    – Não P… eu sou é homem, fica onde tu ta! -grita o cara.
    – Querida, vou desligar, tem um cara aqui do meu lado respondendo tudo, depois a gente se fala.

    Parece piada, mas aconteceu com um conhecido meu. Ele era “o cara”.