Os gatos estão na moda. Até o poeta quase eremita Sidney Wanderley entregou-se a sua Dóris, a quem oferece, cotidianamente, casa, comida e muitos silêncios – o que ela lhe devolve em dobro.

Embora os bichanos não tenham uma carreira de tanto sucesso no cinema e/ou na literatura quanto os cães (os meus preferidos), podem sim bradar ao mundo o seu momento de glória, registrado nas páginas de Os ensaios, de Michel de Montaigne:

– Quando brinco com minha gata, quem poderia dizer se não sou eu um passatempo para ela mais do que ela para mim?

E o francesinho imortal – e lá se vão mais de 400 anos – se derreteu ainda mais diante da criaturinha peluda que se fez sua amiga fiel: “Nós nos divertimos com macaquices recíprocas. Se tenho a possibilidade de começar ou recusar, ela também tem”, disse em solene manifestação de respeito.

Nada demais para quem tratava os bichos como seus iguais: dava a eles o direito, então impensável – século XVI -, de nos responsabilizar pelas incompreensões mútuas:

– Essa falha que compromete a comunicação entre eles e nós, por que seria de responsabilidade apenas deles, e não também nossa?

Montaigne não era biólogo, apenas um leitor da alma dos “animais irracionais” – como tolamente acreditamos que são os de outras espécies. Atribuía a elas qualidades que se imaginavam serem exclusivas dos humanos. O filósofo insuperável intuía, prenhe de razão, que outros animais sentem, sonham, projetam e reagem com rara inteligência e sensibilidade.

É verdade: eles não produzem armas industriais ou de grande poder de destruição – fazer o quê?

Esse entendimento apresentado por ele em Os ensaios custou alguns inimigos famosos a Montaigne. Descartes, sempre em busca de certezas absolutas e que via no ser humano a única grande manifestação da criação divina, não se conformava com tamanha heresia: o resto, resto seria – máquinas de comer, defecar, urinar, dormir e procriar. Só o homem era o tal.

Até por isso, Os ensaios ficaram no limbo, no Índex de Livros Proibidos, por quase 180 anos, a partir do século XVII.

Quem mandou brincar com os deuses humanos?

Os biólogos evolucionistas e os estudiosos da etologia – ciência que pesquisa o comportamento animal – de hoje dariam plena razão ao filósofo amigo dos animais.

O polímata Jared Diamond, em O Terceiro Chimpanzé, traz preciosas informações sobre o tema. Brinca com a capacidade – real – de elefantes produzirem arte moderna de altíssima qualidade, a ser apreciada até por bípedes sem penas, desde que sem preconceitos – quando é o caso.

Mas as grandes lições do livro estão nos níveis de organização política, por exemplo, das sociedades dos grandes primatas – os “macacos” que não possuem rabo. Talvez, se conhecesse essa incrível e belíssima história, Montaigne afirmasse que o homem é tão somente o ‘bufão da Natureza’.

Quatro séculos depois dele, o que disse Diamond sobre a comunicação entre espécies tão semelhantes e ainda distintas?

– Já descobrimos duas espécies muito inteligentes, mas tecnicamente menos avançadas do que nós – o chimpanzé comum e o chimpanzé pigmeu (bonobo). A nossa resposta foi sentar-nos e conversar com eles? Claro que não. Em vez disso, nós os matamos, dissecamos, cortamos suas cabeças como troféus, os exibimos em jaulas, os injetamos com o vírus da AIDS para fazer experimento médico e destruímos ou invadimos seus habitats. Essa resposta era previsível, porque os exploradores humanos que descobriram humanos menos avançados também responderam atirando neles, dizimando suas populações.

Alguém aí do outro lado discordaria?

É sabida e reconhecida a crueldade humana na criação de animais no cativeiro, para abate, só superada por aquela que é a marca dos presídios brasileiros, onde estão enjaulados milhares dos nossos “irmãos”.

E cá pra nós: é pura bobagem o homem ser tão metido a besta – ele é a própria bête!

 

E daí? Greve dos caminhoneiros é a primeira mobilização nacional pelo WhatsApp
O que é um candidato ficha-limpa pra você?
  • Juvenal Gonçalves

    Aqui, de São Paulo, onde ontem cheguei, quase precisando de uma boa mula para fazer o percurso, dada “inteligência” humana atual, em se locupletar da renda da energia fóssil dos nossos queridos “bichinhos”, bom dia!
    Parabéns pela profunda docilidade do texto, Ricardo.
    E, fazendo alusão a ele e a minha inicial, lembro aqui do nosso nordestino Lua, o Gonzagão, que fez a mais justa homenagem ao ‘nosso irmão”, que tanto ajudou no progresso da nossa nação..,
    Nação esta que, quase sempre se comporta calma e dócil como a bichana da sua crônica, que fica feliz com a casa e comida ofertadas pelo eremita. Pelo menos casa a “bichinha” tem. Já estes, muitos não têm nem onde morar.
    Sem mais “mais”, boa semana para todos!!!

    • Joao da TROÇA anarco-carnavalesca BACURAU da Rua NOVA do Sertão – em St’ANA!

      Grande JUVENAL! … na mÓ cidade NORDESTINADA do país!
      Caríssimo RICARDO … dois BONS domingo amaÇeyÓzado$!
      entre TRIBUTOS de caminhoneiros ao inesquecível alemão Rudolf C K DISEL (1858—1913) na MANCHA do Canal Inglês ao redor de Paris de Montaigne, um francês.
      https://pt.wikipedia.org/wiki/Rudolf_Diesel
      A PREÇO de hoje sob olhar atento do PROCON consumiríamos SEM moderação as extravagâncias de MONTAIGNE (1533-1592):
      – jurista e político, filósofo e escritor de CORAÇÃO;
      – da expressão ‘de cor’ (com a ALMA, em latim) ao coeur afrancesado e ao decoreba LUSO arramalhado.
      No BraZZêLL menos que xará de VAMPIRO Golpista, Michel Montaigne até hoje provoca INVEJA:
      – saboreou época de régua culta ANALFABETA onde poucos se orgulhavam do trivial, autoproclamando-se ESCRITORES;
      – com paladar cético às REGRAS, humanista modesto à bolachas ‘água e sal’, havia café nos 1.500’s?
      Em TEMPOS decoreba livresco e mnemônico quis ENSINAR a partir de experiências, EM ação nas ruas das CIDADES e nos campos insondáveis.
      Quis MONTAIGNE educar além telinha de apê com joanela OLHA-GROTA caolhamente na NET somando fakes & burrros multiplicados por ZAP’s.
      Dos Ensaios proibidos brotando IDEIAS atuais perominia saekula saekulorum:
      1 – Toda ideia NOVA é perigosa. [CAMINHONEIROS aprendem rápido]
      2 – Tod@s @s PESSOAS merecem respeito [SERUMANO és, eu sou & somos]
      3 – Ao EDUCAR hay de haver respeito aos ANSEIOS de crianças e ADOLESCENTES.
      https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/as-ideias-michel-montaigne.htm
      Aí me pergunto meio a ESMO: uma pessoa seria HONESTA sem refletir acerca de crenças e superstições?
      – Apenas sendo OBEDIENTE sem dialogar sobre as coisas?
      > Como recém-nascidos em CASAS entre récem-VIZINHOse adaptar-se-ão nas RUAS uns aos outros sem desaforos?
      – Nas FUTURAS, estamos no Séc XVI, como as SOCIEDADES viverão em harmonia entre nações @-mundos afora?
      https://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_de_Montaigne

      Resposta
      Valeu, João.
      Ótima contribuição (mais uma vez).

  • JEu

    Bom dia, Ricardo. Texto belíssimo… que nos convida a meditar profundamente na alma humana… e a pergunta inexorável torna a surgir: o que realmente somos?!!! deuses ou simples “bestas” humanizadas?!!! pois pior que as bestas feras selvagens que matam por necessidade de alimentação ou por defesa própria (e só por isso), parece que nós, os ditos “humanos” muitas vezes preferimos matar pelo prazer de sentir ser o “causador” da morte (prazer mórbido?!!!)… afinal, quem já não tomou conhecimento da matança causada por caçadores esportistas nas selvas africanas?!!! ou o nosso prazer, senão em matar, pelo menos em “enjaular” criaturinhas indefesas que, por possuírem asas, foram criadas para a liberdade dos ares e das florestas (os pássaros)?… ou mesmo outros tipos de animais selvagens que deveriam ter respeitados seus “direitos” de viver nos seus legítimos habitats que insistimos em destruir em nossa sanha malvada de explorar, dominar e usar a nosso bel prazer… e tudo isso sem mencionar a maneira como “tratamos” uns aos outros… e ainda nos dizermos “seres civilizados”… e poderíamos perguntar: que civilização é essa que prejudica a tudo e a todos, poluindo, modificando para pior, destruindo nosso próprio local de sobrevivência?!!! sobre os animais ditos “irracionais” temos muito mesmo a aprender ainda… a começar pela pecha que lhes imputamos de “irracionais”… como se irracionalidade não fosse algo comum na raça dita “racional”… hoje em dia, aqui e ali, grassarem os ideais do respeito aos nossos “irmãos” de vida planetária… pois já existem entendimentos para, se não eliminar imediatamente, pelo menos diminuir o consumo de proteínas animais… e, para finalizar, chamo a atenção para a necessidade de proteção e auxílio aos animais que vivem nas ruas… muitos abandonados por aqueles que um dia assumiram o dever de ampará-los e conviver com eles em seus lares, mas que, por nossa ignorância e egoísmo, largamos eles nas ruas quando a velhice ou a doença lhes atingem a vida, e tudo só para não ter o “trabalho” dos cuidados, até como “devolução” dos momentos de alegria e satisfação que eles nos dão quando jovens e sãos… Bom domingo, Ricardo.

    • SãJÃO aLLagoano 2018: rela COXINHAS suadas cUm louras geladas – MorTânDeLLa$!

      Caro JEu … 1 bom domingo na régua do ESPÍRITO de Montaigne, evoluímos?
      um BOM sujeito sobrevivendo à proibição da OBRA no Séc XVII:
      – pavimentara caminhos por 300 anos pra Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), o kardecista?
      – CERTO é que dissera: pensamentos e atitudes das PESSOAS sofrem pressão do tempo metamorfoseador.
      Aos 59 de IDADE o senhor Montaigne (1533-1592) despediu-se do Colégio de Guyenne e da Univ de Toulouse.
      Curioso, folheva Séneca e Cícero da democracia GREGA, e também Epicuro e Plutarco mais Lucrécio.
      Deixou uma FILHOTA: Léonore!
      > Seria a LENORE das estrofes d’CORVO (1845) de Poe (1809-1949)?
      – PÉROLAS traduzidas por M Assis e M Bandeira, F Pessoa e H Campos entre outr@s.
      http://www.doseliteraria.com.br/2013/04/as-traducoes-de-o-corvo.html

  • Há Lagoas

    Uma das maiores qualidades no ser humano é o equilíbrio, principalmente no que se refere as suas convicções dogmáticas – ou ideológicas.
    Você é um humanista nato, ao mesmo tempo em que reconhece que sendo – nós – uma simples criatura, não passamos de uma simples besta.
    PS. De tanto você falar no “francesinho” Montaigne passei a tolerá-lo, creio ser isso um avanço pois mais do que simples fragmentos que você posta em suas crônicas, eu comecei a ler. E admito, tem sido interessante e porque não dizer desconcertante…
    Bom domingo a todos.

    • Sertanejo ENLUTADO esperando Justiça e PAZ com FÉ

      De fato, Há Lagoas! … todos merecemos 1 BOM domingo!
      pois vemos Montaigne, aonde estiver, um envergonhado xará do MICHEL prendedor IDEIAS no varal da LavaJATO!
      E assim viveu MONTAIGNE em 3 fases:
      > 1ª: ESTOCISMO, ao redor do amigo La Boétie (1530-1563)
      – ansiando a verdade absoluta p’um espírito em dúvida – VOMITOU isso;
      > 2ª: CETICISMO, em meio a conflitos entre católicos e protestantes
      – violências e guerras sobre o @-mundo SUB-Deus contra fanatismos internéticos.
      > 3ª: EGOÍSMO, maduro quase PODRE de velho interessa-se mais por SI mesmo q’p’outros
      – aí mandou ver nos ENSAIOS, escritos pessoais – crítica radical de costumes e saberes OFICIAIS d’época.
      Nos ENSAIOS, aforuxa a TÉCNICA mirando as gerações futuras:
      – vaidade e LIBERDADE de consciência, coxos e caolhos da PERIFERIA entre bêbados e prostitutas;
      – desconjuntados e SEM unidade aparente, flui até ganhar forma da boquinha da GARRAFA, no papel;
      em rítmo de VAGABUNDAGEM, de ideia a ideia, associação a associação desagradáveis ao leitores IMEDIATISTA.
      [Prof João F P Cabral], UFU das Minas e UNICAMP SãFáiu-çP
      https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/as-ideias-michel-montaigne.htm

  • Antonio Moreira

    Achava interessante a maneira e a seriedade que a tia(90 e tantos anos de idade) da minha mulher dizia: Pare de xamego
    com o marido da sua prima! Ela se referia a uma cachorra enorme que era tratada como uma filha.
    Um dia desses, à noite, na praia, fazia a minha atividade física e por necessidade fui até um coqueiro(local escuro) fazer um xixi. De repente apareceu um cachorro e se aproximou de mim, fiquei um pouco assustado. Ele manso, sereno, educadamente esperou a sua vez para fazer a mesma coisa no mesmo lugar que eu fiz. Ainda bem que não foi um humano!!!
    a sua vez para fazer a mesma coisa no mesmo lugar que eu fiz. Ainda bem que não foi um humano!!!

  • Berta

    Uma maravilha de crônica. Suave e sofisticada.
    Obrigada pelo bom início de domingo.

  • Antonio Carlos de Almeida Barbosa

    Pois é grande Mota, o texto está belíssimo e veio em um momento especial da minha vida, é que em dezembro passado, chegou na nossa casa um cão com uns 15 dias de vida, a minha afeição e de todos da casa a ele, fez muito bem, especialmente em mim, que fez aflorar sentimentos adormecidos, esquecidos, tornando-me mais emotivo, tolerante e enfim, de grandes sentimentos, como também para a minha esposa, que tem uma vida de intenso trabalho e responsabilidade. Nossa casa ficou com a chegada dele, ficou mais habitável e amorosa.
    A colocação de Montaigne, é retrato fiel da nossa relação, pois temos ganhos mútuos quando brincamos ou passeamos diariamente, é de um aprendizado maravilhoso, com reconhecimento recíproco, a cada dia aumenta nossa amizade, afinal ele somente tem seis meses de vida.
    Nossa comunicação é principalmente por gestos e afetos, e vibro com cada conquista alcançada e tenho também como conquistas nossas, dividimos as alegrias.
    Nossa chegada em casa, é gratificada com muita alegria, algazarra, gaiatice e brincadeiras, e após o jantar, ele já sabe que iremos realizar um passeio pelo condomínio, onde ele e eu vamos interagir como os moradores, com seus cão e afins.
    Nunca imaginei que aos 55 anos, iria passar a ter tantas alegrias, aflorar tantos bons sentimentos e amizade, tornando-me mais humano e tolerante.
    Enquanto escrevo o texto, ele está deitado ao lado da cadeira, esperando pacientemente o término, para que possamos brincar e dar um breve passeio por entre as árvores, devido ao brilho do sol e o adiantado da hora, apesar de hoje ser dia de domingo.
    Chega de muita escrita, vou aproveitar, a vida é agora, meu amigo me espera.
    Mais uma vez, valeu o texto Mota.
    Bom domingo

  • Joilson Gouveia Bel&Cel RR

    Há, pois, aves emplumadas bípedes que imitam sons e vozes humanas, mas apenas repetem-nas; não as cria nem inventam, ainda que um orangotango, chipanzé ou um elefante manche uma tela com pincéis – que uns veem arte nas manchas – nenhum deles é capaz de criar uma simples palavra, frase ou um mero desenho que seja! Ou não?
    Em defesa dos bufões da natureza! J
    Abr
    *JG
    P.S.: Postado in http://blog.tnh1.com.br/ricardomota/2018/05/27/a-gata-de-montaigne-e-o-bufao-da-natureza/
    – na íntegra in http://gouveiacel.blogspot.com/2018/05/polimatas-primatas-duplipensadores.html