De repente, olhou para o seu braço, pousado na janela aberta do carro, e tomou um susto: os pelos delicados, ainda com alguma jovialidade, estavam eriçados. Teve a estranha sensação de que o mundo sabia o que os havia agitado, de forma incontrolável.

Tremeu.

Deu-se conta de que o movimento, a que não pôde se antepor, acontecera não pela força do vento, do atrito provocado pela velocidade do carro. Fora, sim, o impulso vindo de dentro, que levara a penugem a se exibir em meio a um rebuliço interior.

Viajara no tempo, sem que se percebesse de onde vinha e para onde ia, até uma tarde fria, atípica num verão tropical, em que seu corpo nu, cheio de juventude, encoberto, desleixadamente, por lençóis bem branquinhos, jazia tombado numa cama larga de um antigo apartamento do Centro da cidade.

Era a morada de uma velha amiga que se compadecera da tristeza que vivia em seus olhos e que entrara pela porta da sua alma até se alojar no seu ventre sem viço, inóspito, de uma secura tamanha, que nada que respirasse haveria de sobreviver se ali fosse buscar abrigo.

É claro que não estava, in memoriam, sozinha, a maldizer o sem-gozo da vida cotidiana. Vivera, então, como nunca mais. Um deleite só interrompido por um estampido seco, inexplicável, véspera de luto.

A súbita recordação lhe chegou úmida. E aquilo lhe deu uma sensação de prazer que há muito não experimentara. Era tão intenso, que imaginou uma cachoeira a lhe correr pelas frestas, exalando um cheiro agridoce, que lhe tomou as narinas.

Arrepio.

Levou, tateando, incontinenti, a sua mão onde imaginava uma nascente, minando amor. Sentiu-se aliviada. Não eram suas carnes que haviam se banhado de dentro pra fora. Não agora.

Refez-se da leve tonteira que lhe tirou a vista da paisagem insípida, como insípida há de ser toda paisagem quando miramos, certeiramente, as nossas melhores lembranças, e algo lhe soou como um eco a impor a vontade autoritária da realidade:

– É aqui?

A pergunta, boiando na manhã sem brilho, voz monótona, resgatou-a do alvoroçado silêncio em que se metera: estava de volta ao lugar de onde não havia saído.

– Acho que é.

Antes de tirar o cinto de segurança, assegurou-se de que sua solidão estava preservada, intacta. Aliás, eram, ali, duas solidões espessas, deduziu com um fio de ironia entre os dentes, e elas nunca haveriam de se misturar – nem naquele minúsculo espaço nem na imensidão do Universo.

Finalmente, notou que a sua penugem repousara, sem mais vontade de se mostrar, entregue, sobre o braço firme, rijo, cuja força, no entanto, não fora suficiente para desvencilhá-la dos lençóis manchados daquela tarde de verão.

Uma só lembrança a valer pela vida inteira.

 

 

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  • Cesar

    Este texto, nesta manhã chuvosa, com um chá, encerra o fim de semana com chave de ouro. Parabéns!!!

  • JEu

    Bom dia,Ricardo. Como diz o tema de uma música internacional: Love’s in the air… o amor está no ar… e ninguém pode lhe escapar das prazenteiras garras… muito embora o prazer carnal seja (e deve ser) somente uma pequena ponta de um enorme iceberg, pois o AMOR é algo muito maior… os prazeres passam… o verdadeiro AMOR fica para sempre… o prazer dá estímulo para amar… o AMOR alimenta para toda a vida… eternamente… Bom acordar no domingo e pensar o amor… nos amores… na vida… Bom domingo.

  • Joao TT

    Caríssimo Ricardo MOTA, … “do AMOR ninguém ESCÁPULA!
    … “sempre há um CALCANHAR de Aquiles” [Peri PANE, Canções Velhas Para Embrulhar Peixes (2012, Traquitana]
    … “Nada se CRIA, tudo se TRANSTORNA, Ecopráticamente com PERI e Anelis ASSUMPÇÃO,
    reality na TV Cultura com Anelis e Peri + Ma Zulmira: ZUZU responde (2009).
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Ecoprático
    SIM! … Anelis é filha do PAI Itamar (1949-2003), https://pt.wikipedia.org/wiki/Itamar_Assumpção)
    Um BOM domingo com fraterno ABRAÇO!

    • Joao TT

      Em TEMPO, se me permite – GRATO!
      * M’a ILÍADA n’tua crista ilíaCa: nada TÍBIO em tua tíbia
      – em teu períneo, teus ísquios até HELENA Costela p’costela
      * Internado em teu esterno, tua clavícula: meu LAR teu maxilar
      – m’a FÊMEA: t’fêmur n’ RÁDIO profaanar oss’SACRO vértebra p’vértebra
      [ESCÁPULA], P P 4min 35s, https://www.youtube.com/watch?v=6ZrYgFrwJq4

  • Flávia

    Quanta sensibilidade!

    Bom domingo.

  • Há Lagoas

    Rapaz!
    O autor e sua sensibilidade de poeta e eu com minha concupiscência carnal…
    Boa semana a todos!

  • Antonio Carlos Barbosa

    velho Mota, de lembranças impagáveis pessoais e dos amigos que te relatam a vida e os amores vividos e sonhados, pois bem, a vida pode se resumir a um belíssimo momento, ou com muita alegria e muitos ou talvez inúmeros momentos de sentimentos, de amores, de lembranças belíssimas e apaixonantes como a relatada no belo texto.
    Boa semana para todos.

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