Éramos falantes, contadores de vantagens e de verdades hipertrofiadas, como quaisquer garotos da nossa idade. Sempre que a plateia se renovava, que gente nova entrava no bando, apresentávamos versões ainda mais heroicas daquilo que havíamos feito, visto – ou não.

Um dos nossos era um tanto mais ingênuo, e disso nos aproveitávamos para explodir em deliciosas gargalhadas. Sem que ele percebesse, é claro. Aliás, acho que nunca percebeu.

Ele contava com muito gosto uma história que não seria lá, ao nosso juízo, das mais exemplares. Pior ainda: a protagonista era a mãe do garoto. Ela, narrava com sofreguidão, havia se envolvido em uma briga de trânsito numa área de grande visibilidade em Maceió, em plena luz do dia, com um desfecho, digamos heterodoxo: saíram no braço, a mãe do alegre e inocente narrador e sua antagonista, sendo separadas apenas quando dois brutamontes resolveram assumir o controle da situação.

E ele encerrava, prenhe de entusiasmo:

– Minha mãe deu um pau na mulher, que ela ficou sangrando.

Insistíamos que ele repetisse a desconhecidos o embate épico, que já era bastante divulgado pela cidade. Recordando que naquele tempo, há quase 50 anos, o volume de carros em circulação era bem menor do que hoje, quando o trânsito por aqui – e por ali, e por acolá – ficou insuportável. Mulheres dirigindo, então, eram uma raridade. Mas eis que duas personagens do tipo que não leva desaforo para casa se encontram montadas em quadro rodas. Em qualquer tempo, essa, digamos, intercessão, é véspera de confusão. E aí, adeus caminho civilizador.

Lembrei-me dessa historinha lá da infância um dia desses, quando uma motorista, o que só consegui enxergar depois, jogou com rara indocilidade o seu carro sobre o meu, na Fernandes Lima. Passado o susto – só mais um -, fiquei a acompanhá-la a distância e com alguma preocupação. Que, aliás, se mostrou justificada: antes do semáforo do Cepa, ela bateu na traseira de outro veículo, querendo, talvez, desmentir uma das mais célebres e populares leis de Newton.

Foi aí que descobri – confesso: algo assustado – que se tratava de uma jovem mulher. Talvez pela idade, eu ainda não me conformei, e a palavra é esta, com a igualdade de gênero em todos os campos da nossa existência, principalmente na agressividade que se segue à intolerância cotidiana.

Eu já firmei, é verdade, um conceito que há de ser desfeito lá pra diante, quando eu já não for: a falta de educação no trânsito é o que de mais democrático existe no Brasil. Idade, gênero, ideologia, religião, renda, todos os agrupamentos humanos que habitam no lado de baixo do Equador estão representados com absoluta igualdade – na maioria, que fique claro – entre os que circulam e se agridem nas ruas do nosso país. Em resumo: gente ao volante é um perigo constante.

Nunca imaginaria, nas minhas andanças e presepadas de pré-adolescente, que a mãe do nosso ingênuo companheiro de aventuras se tornaria uma personagem banal, tão comum, no trânsito de Maceió (e não só).

Feminista convicto, mãe, mulher e filha a controlar os meus passos, não haveria de prever que a igualdade de gênero em terras que já foram da gente Tupi se expressaria de forma tão inteira, avexada e primeira num território absurdamente áspero, no qual eu muito prezaria que não existisse.

Ao que parece, tolo não era o nosso colega de traquinagem; tolo é quem escreve estas toscas linhas  domingueiras.

 

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  • Costa

    Boas e gostosas lembranças.
    Só foi muito modesto no final, quisera eu ter 10% da sua “tolice”.
    Seus textos são doces como mel.
    PS Que sejas conosco, até bem mais pra lá de depois…

    e tenho dito…

  • Antonio Moreira

    Na última 4ª-feira, 18 horas, Shopping Iguatemi, sentido praia – Como de rotina, não flui o trânsito.
    Carros colados nos outros, motoristas impacientes, dribes de motoqueiros para todo lado.
    Enfim, o meu carro foi linchado por pedestres porque queimei o fim da faixa de pedestre.
    Ainda havia espaço suficiente para todo pedestre passar. Travou o carro que estava na frente do meu.
    Jamais fazia isso de proposito ou para tirar vantagem.
    Impulso: Baixei o vidro do carro e mandei bater na PQP.
    Sinceramente, desculpe-me um milhão de vezes…

  • JEu

    Bom dia, Ricardo. Mais uma verdade (relativa, como em tudo o que existe no universo humano conhecido) dita em poucas palavras: a tendência para a violência que todos, de uma forma ou de outra… com maior ou menor intensidade… trazemos em nossa personalidade… e mais ainda, como destacado no texto, não é exclusividade do chamado sexo forte, o masculino… principalmente nos dias atuais, onde descobrimos, e aceitemos ou não, que a mulher não é diferente do homem… ser feminista ou ser machista tornou-se fenômeno de pura escolha de opinião… os fatos diários estão demonstrando que nada pode impedir essa marcha inexorável da equiparação dos sexos… em todos os sentidos e em todas as situações… muito embora somente um dos dois é (por enquanto, pois ninguém sabe onde a ciência genética vai nos levar um dia) capaz de abrigar a vida em seu íntimo corporal… talvez essa seja a “última” fronteira a ser batida… e se tudo está tão “igualitário” lógico que a agressividade no trânsito é somente mais uma clara demonstração dessa igualdade (muito embora não que ache a violência algo naturalmente aceitável, seja qual for o sexo envolvido)… no mais, creio, o que podemos fazer é procurar não dar abrigo e muito menos aos instintos mais baixos de autodefesa e agradecer à natureza por ser tão pródiga em sua estrutura universal: unidade de propósitos dentro de uma variedade infinita… assim a vida nunca será monótona… Bom domingo.

  • SEBASTIÃOIGUATEMYRCADENACORDEIRO

    SEM MAIORES COMENTÁRIOS…RETRATO DE UMA REALIDADE CRUA E NUA DE NOSSA CIVILIZAÇÃO .

  • Valmer

    O mundo não mudou, só ficou “maior”.
    Como sempre, ótima crônica.

  • Robson Costa

    Cartola já dizia “o mundo é um Moinho”. Tempos atrás, qualquer criança de 8, 10 anos poderia tomar um ônibus, atualmente, não confiamos…
    A crônica realista, nos mostra o quanto de saudades o passado nos traz.

  • Tita

    A conclusão é tão lamentável quanto verdadeira: a igualdade de gênero no Brasil aconteceu primeiro na estupidez.

  • Ione Romão

    Rsrssrsrs, muito boas suas palavras neste texto Ricardo. Amei!Primeiro ia arengar com você ao entender o título da crônica: “Perigo constante”, rsrsrs, mas, depois, continuando a leitura, percebi que não se referia tão somente a nós mulheres no trânsito, até porque, bem sabemos, que os homens causam mais acidentes… rsrs. Gostei do “presepada da pré-adolescência”, rsrs… E, será muito bom e interessante tê-lo conosco por muitos e muitos anos escrevendo “toscas linhas domingueiras” (MOTA, 2017)! Deus continue a lhe abençoar, guardar e dar inspiração para compor textos tão significativos para nós.

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