Como já disse aqui, eu sou um sujeito de hábitos que viram vícios. Funciono bem assim, imagino – é a disciplina vencendo a preguiça (ao meu modo).

Era mais uma manhã de sábado, e eu estava comprando frutas em um estabelecimento perto de casa. Encontro o sempre sorridente Carlos Alberto Alves de Melo, a quem eu tenho visto com alguma frequência nos últimos meses graça ao seu genro – e meu companheiro de portal – Bruno Cabuloso, o Cabu para os íntimos.

(Armadilha do destino: é a mesma alcunha de um tio do personagem dessa crônica.)

Ele me aborda com o seu permanente sorriso e me indaga sobre um livro, Poetas que pensaram o mundo (Companhia Das Letras):

– Você tem?

Digo que não, e ele, rápido no gatilho:

– Vou lhe dar de presente.

Em seguida, me provoca uma reflexão “ligeira” ao dizer que o sentimento que mais evita nessa quadra da existência – somos praticamente da mesma idade – é a amargura: tudo o que lhe tira o doce dos pequenos prazeres que a vida nos oferece, parcimoniosamente, deve ser evitado (no que for possível, é claro).

Respondo-lhe que busco, “vetusto” jornalista que sou, a serenidade, ensinamento maior do meu filósofo preferido, Michel de Montaigne (de novo, Ricardo?).

Acompanho-o com o olhar, quase sem perceber, e me deparo com a alegria dos funcionários do lugar ao recebê-lo. Provocações em tom de brincadeira, de parte a parte, que seriam evitadas, em regra, por quem ocupa um cargo público importante – ele é promotor –, o que já exigiria tratamento formal e reverencioso. Não é o seu caso, estava claro.

Penso comigo: “Um homem bom”.

Dias depois, recebo o seu presente, algo tão precioso que é preciso pegá-lo com as luvas da delicadeza: tocá-lo como quem afaga seus afetos – eis o que merecem, para mim, os grandes livros.

A promessa fora cumprida, para meu deleite nesses tempos tão sem poesia. Eis uma obra pra gente grande, muito maior do que um dos seus leitores do momento.

Começo a leitura por Lucrécio, que já me havia conquistado em A virada (Sthepen Greenblatt – Companhia Das Letras) e me espanto com um texto do poeta-filósofo:

“Toda a natureza é constituída por duas coisas: existem os corpos e existe o vácuo em que se acham colocados e em que se movem em diferentes direções”.

É verdade: poderia ser a introdução de qualquer livro sobre física moderna, mas, gente, isso foi “poetado”, em Da natureza, no século I a.C.!

Bêbado de encantamento, telefono para agradecer ao “vovô do ano” e me vejo envolvido por uma conversa que, de tão agradável, foi difícil pôr fim.

Não escondi, também, a minha curiosidade:

– Por que “amargura”?

Com calma e sem qualquer rancor, explicou-me que se despediu – em vida – de um “amigo” que o cativara desde os tempos em que os cabelos lhe eram fartos e em tons escuros. Ao sentir os efeitos físicos da pancada, decidiu-se por ignorar a dor e aquele que a provocara. Daí em diante, o que sabe a amargo não há de ser ingerido.

Não citamos nomes, e nem era o caso, mas confidenciei-lhe que vivi a mesma experiência e tomei decisão igual: eu, em busca da serenidade; ele, para livrar-se de tudo que lhe provocasse amargura. Ao final, deu no mesmo.

Encerramos a nossa conversa “besta”, sobre literatura e reminiscências, falando sobre Guimarães Rosa (de novo, Ricardo?) e o seu mais-que-perfeito Grande Sertão: Veredas. E foi nele que encontrei o melhor desfecho para um papo que ameaçava invadir a hora do almoço, ainda servindo a sobremesa:

“… quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente”.

Foi dar o presente, agora me aguente!

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  • JEu

    Beleza de texto, Ricardo. Mais uma vez vc nos traz algo importante para meditar numa manhã de domingo. Sem querer provocar, gostaria de citar alguém que disse algo que se enquadra perfeitamente no contexto: ele disse: perdoai não somente sete vezes, mais setenta vezes sete vezes, como meio de conseguirmos adquirir a paz de consciência e a segurança que precisamos sempre para seguir adiante… Muito bom domingo.

  • Há Lagoas

    Talvez esteja na serenidade um dos segredos para a longevidade da vida.
    Minha saudosa avó paterna me dizia com toda a sua simplicidade: “felicidade é mais do que viver”.
    Se for para ter uma vida de amargura, é melhor partir…

  • Sú

    Coração leve… Vida leve… Aplausos!

  • Augusta

    Descartar a amargura em busca da serenidade é um movimento da maturidade e da sabedoria. Fazê-lo é uma ação que exige coragem, e não o contrário. Eis a lição da crônica.
    Bom domingo.

  • Arthur Melo

    Só um diálogo de HOMENS sensíveis a vida é ao pensamento da humanidade poderia produzir tamanha sabedoria! Fiquei muito honrado com um homem da sua postura ética e moral, esculpindo com as palavras, como bem faz em sua labuta diária, tamanha obra de arte regada pela sabedoria e pelo carinho ao ser humano! Registro aqui meu agradecimento e orgulho pelo seu carinho com a personagem de seu texto!

  • maria jose da silva

    Parabéns pela crônica.

  • Antônio Emanuel de Albuquerque morais filho

    Vc é “fantástico “Ricardo.

  • Rosa Cavalcante

    Você é bom demais! Cheiro. Rosa do Pife

  • memória

    A amargura é inimiga da sinceridade.

  • Roseane Tenório Chagas

    Que leitura serena e deliciosa. Essas ‘ conversas’ domingueiras com você me lembram o que eu sentia quando conversava com Chagão, uma deliciosa serenidade. Beijos querido.