O que dizer de alguém que, ao atravessar a rua, bate de frente com o trem que cumpria o seu percurso de sempre, costumeiro, fazendo o mesmo e inconfundível barulho? Seguramente, que se chama Lulão e que mora na rua Buarque de Macedo, no Centro. Pois foi exatamente o que aconteceu há alguns anos, e o protagonista da história está aí para contá-la com toda a graça que lhe é peculiar. E não é para menos. Até porque já existia uma evidente perseguição daquela via para com o personagem. E não é que em outra oportunidade, fazendo o mesmo trajeto, Lulão caiu por inteiro numa boca-de-lobo (que estava sem a devida tampa, claro)?

 

Nada que fizesse a “Rádio Globo”, como o chamava o meu pai,  perder o gosto pela troça. Lulão  – seu Lula, para nós – acompanhava em detalhes tudo o que se passava com os viventes da velha Buarque de Macedo. Não simplesmente para falar da vida alheia, nada disso. Os acontecimentos eram a matéria-prima para a sua eterna galhofa. Seu Afrânio, coitado, era um dos alvos prediletos da dupla – Lulão puxando o papo.

 

Viaja, seu Afrânio, para o Paraguai, paraíso da muamba, onde tantos iam em excursão buscar produtos “importados” a preço de pechincha. Traz uma coleção de relógios “Mido”, ao custo de dez cruzeiros a unidade. “São à prova d’água e banhados a ouro”, afirmou orgulhoso. “Se botar na bacia cheia vai borbulhar e enferrujar”, consertou, na hora, seu Lula.

 

A empregada do seu Afrânio pede “oito pães” na venda do seu Paulo. “Vai ter festa hoje em casa?”, indagou prontamente o debochado Lulão, deixando sem graça o patrão da moça e a própria. Espírito zombeteiro, e dotado de um  apetite cuja voracidade é de fazer inveja a toda a fauna brasileira – e da selva africana também.

 

Lembro que nos carnavais da minha infância, ele e meu pai, estandarte na mão, se divertiam com o seu bloco “Flecha Peixe”, indo de casa em casa, pela Buarque de Macedo. Bebiam e comiam o prato que era a especialidade de cada morador da rua (na minha casa era o tão ansiosamente aguardado jacaré no dendê – de lamber os beiços.) Quem mais comia? E quem mais bebia? Lulão, obviamente, mesmo que o dia seguinte fosse de cama e de incessante mal-estar. O prazer havia chegado primeiro, na véspera.

 

Seu Luiz Mota era maçom, e na loja que freqüentava havia sempre uma festa – ou “banquete”, como dizia papai, provocando a gula do amigo. Logo ele se apresentou como um potencial integrante da “sociedade secreta”. E já na primeira oportunidade mostrou ao que tinha ido. No “banquete” inaugural se ofereceu como garçom voluntário. Pobres dos demais comensais! Tiveram que se contentar com as asinhas de frango que lhes chegaram à mesa. Ao ver o estrago, papai apontou o olhar para o Lulão, que respondeu com um despudorado sorriso de satisfação – do elástico estômago, bem sabia o “Mota”.

 

Desastrado, está escrito acima, ele também sempre foi. Realizava, sem titubear, todas as tarefas domésticas, como era próprio se fazer, então. Certo dia,  resolveu podar a árvore que ficava na frente da sua casa. Armada a escada, pôs-se a escalá-la até o último degrau. Cortados os galhos excessivos, Lulão, ato contínuo, resolveu descer da escada. Só que o fez pelo lado errado. Deu mais um passo adiante, em direção… ao nada.

 

Claro, foi ao chão, com seu corpanzil. O nariz avantajado sofreu, os óculos ficaram imprestáveis. Mas a história continuou, e a Buarque de Macedo, se não tem mais seu Luiz Mota para ouvir as últimas que “a Rádio Globo” captou, mantém bem vivo o nosso personagem, a rir das suas (e das dos outros) pequenas tragédias.

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  • Marcos Paredes

    Grande Ricardo! Um político chamou de “pistoleiros de caneta” alguns âncoras, porém esqueceu que profissionais como V.Sa. são bravos, éticos e lúcidos e que transformam a sociedade em direção bem e nos fazem também rir com “causos” maravilhosos. Parabens.

  • Frederico Farias

    Ricardo, papai, que, em vida, também era “habitueé” dessa animadíssima confraria, certa vez confidenciou-me que Seo Lula apelidara Seo Afrânio de TED. Só não me pergunte por quê.

  • Prof Yuri Brandão

    Caro Ricardo, Uma pessoa assim como o Lulão, capaz de rir das próprias tragédias, fez-me lembrar o poeta-passarinho Quintana — figura irreverente e capaz de rir das própria morte, aliás. (Cont.)

  • Prof Yuri Brandão

    (Cont.) Em certa ocasião, salvo engano numa entrevista com Rubem Braga, ele disse que na própria lápide poderiam escrever: “Eu não estou aqui…”. Quer mais? Parabéns pelo texto e forte abraço.

  • Dermeval Araújo de Lacerda

    Ricardo é bom ler algo escrito por vc. sem com uma conotação política, aos domingos.Mas, amanhã é outo dia e esperamos ter notícias das “presepadas” dos taturanas e das aventuras dos Drs.Luna,Janderlyer,Sapucaia. Foi bom ler nesse dia de saudade a palavra carinhosa e respeitosa de: PAPAI.

  • cavalcanti

    Que Beleza!Vc. me faz reviver bons tempos! Pois morei próximo à Buarque de Macedo em frente ao Salgadinho…qdo ainda era doce…sentir e de se ver(viz. ao posto do Cansanção). Meu querido Parabéns!Faço as minhas às (me permita) do Marquinhos Paredes. D’us contigo!

  • Marcos Paredes

    Dr. Fernando Toledo, fomos amigos de infância e V.Exa. sempre foi um homem sensato, humilde, compartilhava comigo todos os momentos. Escreva sua História com letras de ouro. Não temas aos que podem matar o corpo e sim os que matam a alma. Ainda é tempo. Marquito.

  • J Monteiro

    Meu caro Ricardo, enquanto me deliciava com as peripécias do “seo Lula”, me ocorreu uma pergunta: quando os nossos jovens amadurecerem, envelhecerem, terão histórias assim para contar aos seus netos? Estou chegando aos 60, cheio de histórias para contar. Estou vivo…

  • aranda

    AH meu caro se ALAGOAS tivesse varios pistoleiros de caneta nos estariamos entras águas, pena q só temos vc, os outros escrevcem para agradar os sálarios q recebem sem trabalhar, por q ALAGOAS é assim, quem tem coragem de abrir a RECEITA FEDERAL as declarações POLITICAS E FAMILIARES???

  • Jordan Costa

    Amigo Ricardo, obrigado pelo texto – O homem que peitou o trem – que me fez relembrar o quanto de poesia e calor humano existia naquela época.Papai, o Seu Lula, fez muito mais travessuras, lembro-me que ele tentou matar um rato à noite com uma lâmpada fluorescente 40W. Um abraço. Jordan