Em que cantinho da alegria se esconde a tristeza?
E quem ainda não conhece aqueles traços tão peculiares que durante dezoito anos o artista levava para as páginas da mais vendida revista brasileira (na década de 1950, o Cruzeiro tinha uma tiragem superior aos 500 mil exemplares. Até hoje seria um recorde.)? "O Amigo da Onça", que eu já conheci nas reproduções, ou com os seguidores do pernambucano e imigrante Péricles, era o que se pode definir numa palavra: sacana. Ardiloso, traiçoeiro, preconceituoso, impiedoso, e o resto fica ao gosto do freguês. Numa das suas aparições, em dezembro de 1960 – ele "nasceu" em 23 de outubro de 1943 e viveu dezoito anos pelas mãos do seu criador -, o personagem resolve cometer suicídio. Pulando de um edifício, com um envelope na mão, grita para uma assustada testemunha do "tresloucado ato":
-Escuta, só de brincadeira eu escrevi, neste bilhete, que você foi o único culpado por deste meu gesto.
E quase só de brincadeira vivia Péricles de Andrade Maranhão. Nas noitadas, entre mulheres e garrafas, ficou conhecido no Rio boêmio. A destrambelhada alegria das farras cariocas levou o talentoso artista nordestino à sua desgraça: o vício do álcool, uma tragédia em qualquer família – inclusive na dele. Já carregava consigo um imenso peso na consciência pela morte do irmão Joel, a quem teria demorado a ajudar no tratamento de câncer na cidade carioca. A culpa era potencializada pela bebida.
Péricles era casado com outra pernambucana, que ele só chamava de Maria. Tiveram um filho -que se tornou profissional famoso na sua área, a neurologia -, a quem batizaram de Péricles Filho. Desde que o garoto veio ao mundo, Angélica deixou de acompanhar o marido nos bares e boates. Perdeu, o humorista, o seu freio para a eterna saideira. De quando em vez, para desintoxicar, internava-se em alguma clínica, de onde mandava os seus desenhos para a sede de O Cruzeiro.
E quanto mal lhe fez o copo! O homem que "era uma flor de pessoa, educado à exaustão", na definição do amigo e fã Ziraldo, virava ao extremo em seus períodos de crise. Tornava-se agressivo e/ou depressivo. Nada, entretanto, que lhe tirasse o humor tão necessário ao seu "Amigo…". Foi a bebida, com suas inevitáveis conseqüências, que levou o casal a se separar, deixando Péricles ainda mais solto na vida. E, celeremente, ele rumou para o precipício.
Às 14h30m do dia 31 de dezembro de 1961, Péricles resolveu aprontar – como o seu personagem – com os fãs e admiradores do Brasil inteiro. Sozinho, vestiu seu melhor terno branco, calçou os sapatos de verniz, deu um nó perfeito na gravata cinza-escuro e seguiu o roteiro que havia traçado para si pouco antes da virada do ano. Escreveu duas cartas: uma endereçada à mãe, e a outra " a quem interessar possa":
– Sou profundamente sentimental e nunca passei essa época sem uma palavra de carinho. Apenas a solidão me levou a este gesto extremo. Talvez as coisas melhorem para todos.
Ainda não foi esta a sua despedida do papel e da caneta, seus amigos inseparáveis durante mais de vinte anos. Antes de se matar, escreveu num papel de embrulho (como na música de Toquinho e Vinícius – "Um homem chamado Alfredo") a sua preocupação para com quem iria encontrá-lo naquele pequeno e, então, silencioso apartamento:
– Cuidado. Não risquem o fósforo. É gás.
Rildo
Comovente. Rildo. http://www.rildogomes.globolog.com.br/
Roberto Costa
Justa e bela lembrança de uma figura de tanta criatividade e de um personagem tão querido do Brasil. Quanto ao cantinho da alegria que esconde a tristeza você deve estar falando do tricolor das laranjeiras. Oh, sofrimento!
luis antonio paes barreto dos anjos
obrigado pelas crônicas são deliciosas e imperdíveis.
AAraujosilva
Ricardo, Meu Caro Jovem, o limite entre alegria e tristeza é algo sútil, em geral, imperceptível ao grande público que só lida com o lado visível, produtivo do grande artista. Seu belo texto desnuda o macambúzio Péricles X o irreverente Amigo da Onça. Por outro lado, nos trás boas …
AAraujosilva
. . . Por outro lado, nos trás boas reminiscências de “O Cruzeiro” e dos grandes jornais do sul-maravilha; lê-los era uma grande pedida nos antigamente. Só comparável, mesmo, à “mídia instantânea” daquela época: as Rádios Mayrinck, Nacional, Tupy, Globo. Era uma festa!!!
aranda
Se esconde nós remedios, no alccol, nas insonias, e em outras falsas felicidades q estes politicos alagaonos e não alagoanoas usam depois de comprar varios votos e mandatos e não ter a coragem nem de encarar os proprios filhos e esposas.
Gustavo
Em que cantinho da inteligência está a ironia? Admiro o seu trabalho! às vezes o silêncio fala!
NELMA BARROS
Grande Ricardo, belo texto, fui leitora de O Cruzeiro e outras revistas já extintas, como Realidade, que eu lia nas minha férias na casa de um tio no Recife… bateu uma nostalgia do “amigo da onça”. Bons tempos. Obrigada.
celso
Ricardo, Ísso é irrelevante, mas a Última Página não era rancho da Rachel de Queiroz? Bateu essa dúvida. Um abraço, Celso