Eu não duvidaria, nem mesmo naquele longínquo ano de 1976, que ele se tornaria um dos principais poetas do Brasil(mesmo que isso signifique pouco num tempo que ama bem menos a poesia.) Festejado por Carlos Drummond de Andrade, José Mindlin, Affonso Romano de Sant’Anna, Raduan Nassar, entre outros bem situados intelectuais brasileiros. Era o mês de fevereiro e iniciávamos, os dois aos dezessete anos, o curso de Medicina – que não concluiríamos e pelo mesmo motivo: total falta de vocação e de interesse pelos ensinamentos de Hipócrates.

Mas Sidney Wanderley, hoje meu compadre, me chamou a atenção por outro motivo: elétrico, peripatético, falava quase sem parar sobre Camus, Rosa, Marcuse, Kant, Freud, Sartre, entre tantas novidades para mim. Com  desenvoltura e sem pedantismo, porque ele era próprio desse mundo que me soava estranho. É verdade, eu era versado em Música Popular Brasileira e alguma literatura, mas era só. Desde então, tomei-o como referência para as minhas leituras, e foi graças a ele que Fernando Pessoa, Montaigne, Vieira, Guimarães Rosa e outras maravilhas passaram a morar na minha cabeceira.

Surpreendia-me, também, o poeta, pelas situações extravagantes de que seria protagonista – e que nem a idade garante que ele não repetirá, em intensidade e/ou ineditismo. O homem tão íntimo das palavras se mostrava, tantas vezes, desconectado das coisas corriqueiras, situações do cotidiano. Era um atrapalhado, eis a verdade. Agia de forma espontânea e nem sempre seria ele a "vítima" dos seus desacertos.

Éramos dois acadêmicos de Medicina prestes a abandonar o barco quando o irmão de uma pessoa amiga sofreu um acidente gravíssimo, que lhe seccionou a coluna vertebral. Internado por muito tempo na Santa Casa, fazíamos rodízio com outros colegas e familiares dele, nas noites de hospital. Sidney, na sua vez, acompanhou o sofrimento do acidentado sem que o seu gesto altruísta parecesse exatamente o sentimento de solidariedade. Faltava-lhe o tato e o contato com o que nos é comum.

De madrugada, diante do paciente que se alimentava através do soro por dias seguidos, exibiu-se no quarto do hospital com um vistoso sanduíche, daqueles capazes de alimentar um batalhão. E como o doente resmungasse, repetiu seguidas vezes: "Está uma delícia, está uma delícia!", convicto de que ajudava o sofrente na sua recuperação.

Ao findar seu "plantão", Sidney ouviu com sincero pesar o pobre homem gemendo por conta das escaras espalhadas pelas costas, conseqüência de dias e noites deitado na mesma posição. Pedia um colchão d’água, bem mais confortável e adequado, que os mais próximos já estavam providenciando. Apiedado do moço, o poeta tranqüilizou-o: "Calma, que a família já está trazendo o caixão."(!!!)

Não olhando a quem, ia espalhando o bem – ao seu modo, está certo. Ombro amigo, inclusive para estranhos -, e aí morava o perigo. Estagiando no Hospital dos Usineiros, certo dia chegou mais cedo ao consultório(vazio) do médico de quem colhia conhecimentos. Encontrou a atendente aos prantos, pronta para um desabafo. O marido, contou ao novo confidente que se apresentava solícito, batia nela com frequência, o que fazia da sua vida o próprio inferno. O poeta ouviu e, comovido, lhe ofereceu um silencioso consolo.

Semanas se passaram, e estava ele de volta ao consultório em dia muito concorrido, com pacientes à espera do médico atrasado. Desfilou seu sem-jeito pela ampla sala até chegar à atendente, especialmente vivendo um momento de mulher feliz, sabe-se lá o porquê. Depois do "boa-tarde", procurou palavras simpáticas para dar seqüência à conversa e indagou: "A senhora ainda tem apanhado muito do seu marido?"

Depois…bem, depois veio a poesia.

 

 

 

 

 

 

 

 

Luciano Barbosa ainda sem adversário em Arapiraca
Dudu Albuquerque queria voltar no São João - o STJ disse "não"
  • sérgio

    Boa prosa Ricardo Mota. Bom domingo. A medicina perdeu um bom jornalista. E nós ganhamos um jornalista, que cura as nossas angústias. Mas não combinaria mesmo. Já pensou você circulando com uma Pajero, tendo no vidro aquela frase ridícula: “sou médico, meu trabalho tem valor”?

  • Frederico Farias

    Este mesmo, o velho – e atualíssimo – POETINHA. Salve, salve, grande POETA, honrando as tradições da eterna VIÇOSA.

  • Francisco de A Costa

    Ricardo, Medicina é mesmo um território muito árido para espíritos mais sensíveis! Francisco de A. Costa

  • Até quando esperar?

    INFELIZMENTE CARO RICARDO, A SOLUÇÃO FINAL, É A SOLUÇÃO DOS PROBLEMAS DA NOSSA ALAGOAS.

  • J Alves

    Caro Ricardo Mota, a medicina de Hipócrates é resultado de vocação responsável.Admiro muito você, pela personalidade e coerência. Que bom!ganhamos um jornalista ético que contribue não com “terapias medicamentosas”,mas tão-somente com a trama das palavras.Paz e Bem, fica com Deus.

  • laís sandes omena

    Bela crônica a sua desse domingo. E não só para nós, médicos. Um orgulho para a nossa categoria quase ter entre nós gente como o jornalista Ricardo Mota e o poeta Sidney Wanderley. Alagoas não é só dos taturanas, graças a Deus.

  • Álvaro Antônio Machado

    Belo texto, Grande Sidney! Eis uma das razões para o sucesso do nosso querido poeta: o alheamento do cotidiano que, em contrapartida, lhe dá uma aguçada percepção do que os “pobres mortais”, não vêem e, com isso, ele produz maravilhas com sentimentos adormecidos no cadinho da nossa alma.

  • erika damasceno

    Muito engraçada, caro Ricardo, sua crônica do domingo passado. Você e o Sidney … quase mé- dicos! A humanidade se livrou de uma boa … Aliás, o poeta é tão bom nos versos quanto aloprado nas ações. Que Deus o mantenha nos ver- sos e longe dos pacientes. A espécie agradece.